O Espírito Santo, juntamente com Tocantins e Paraná, foram os três estados que ultrapassaram a média nacional de intoxicações por agrotóxicos, segundo estudo divulgado nesta semana do Programa de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da Saúde, que analisou dados de todo o país entre os anos de 2007 e 2014. Enquanto a média nacional é de 6,23 casos para cada 100 mil habitantes, o Espírito Santo alcançou 15,8. O total de intoxicações registradas no estado saltou de 111 em 2007 para 497 em 2014, ou seja, mais do que quadruplicou em sete anos.
O crescimento vertiginoso do envenenamento das lavouras capixabas excedeu, portanto, um problema que, em nível nacional, já é estarrecedor. Ainda de acordo com os dados do Programa do MS, o volume de venenos comercializados no País saltou de 643 mil toneladas para 1,2 milhão de toneladas no período, passando de 10,32 kg/ha para 16,44 kg/ha a relação entre volume de veneno por área plantada.
“É alarmante!”, afirma o agricultor agroecológico Dorizete Cosme, membro da coordenação estadual do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o MPA é uma das instituições que mais lutam pela disseminação da agroecologia no Estado e no País. Uma luta difícil, movida basicamente pela convicção dos próprios agricultores, que recebe apoios pontuais, mas que ainda não receberam o reconhecimento do Poder Público.
“Estamos fazendo é com recursos próprios e a disposição da nossa militância. Tivemos no passado apoio do Governo federal, mas do governo estadual e dos municipais, praticamente nada. Também temos buscado apoios com outras ONGs, tanto no Brasil quanto no exterior”.
A omissão do Estado é histórica, pois o País foi erguido a partir de uma lógica das grandes propriedades agrícolas de monoculturas voltadas para a exportações. Eram as plantations, que aprendemos nos livros de História, hoje chamadas de grandes latifúndios produtores de commodities, ou simplesmente, agronegócio.
Quanto maior a propriedade, mais veneno
Autora do livro Geografia sobre o uso dos agrotóxicos no Brasil, a professora de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP), Larissa Mies Lombardi, em entrevista para a Associação de Organizações em Defesa dos Direitos e do Bem Comum (Abong), afirma que o agronegócio, além dos agrotóxicos, é responsável pelo trabalho escravo e o desmatamento.
“Num pacto de civilidade, que já era hora de termos, como a gente fala com tanta tranquilidade em avanço de agronegócio? A alternativa que almejaríamos seria a construção de uma outra sociedade em que esse tipo de insumo [agrotóxicos] não fosse utilizado”, pondera.
O professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), em Santa Teresa, Lusinério Prezotti, coordenador do Núcleo de Estudo de Agroecologia, em sessão especial sobre Agroecologia na Assembleia Legislativa no início de outubro, apresentou dados que comprovam a íntima relação de dependência entre agronegócio e agrotóxicos. Em sua fala na tribuna, afirmou que 27% das propriedades de zero a dez hectares usam agrotóxico, percentual que cresce para 36% entre as que possuem entre dez a cem hectares; e chega a 80% nas propriedades maiores de cem. “Como se vê, propriedades maiores, que tendem a trabalhar com as commodities agrícolas: soja, milho, algodão, tendem a usar mais agrotóxicos”, afirmou.
No Espírito Santo, as principais monoculturas são de pastagens, eucalipto, cana-de-açúcar e café. Campeãs de agrotóxicos nas terras capixabas. A agricultura familiar, geradora de cerca de 70% do alimento que chega à mesa da população da cidade e também de cerca de 80% dos empregos no campo, recebe menos de 20% dos investimentos governamentais destinados à produção agrícola e está prestes a perder também a já incipiente assistência técnica gratuita. Mesmo assim, é dela que surgem as soluções para a libertação do homem e da natureza sobre o veneno.
A solução sempre brotou entre os camponeses
Foram os pequenos agricultores que, em meados da década de 1980, apoiados por ONGs e Igrejas, iniciaram um boicote aos agrotóxicos e passaram a reinventar a agricultura natural e ecológica.
“A força que nos move é muito maior que o capital. A resistência e a união que nos fortalece, permite-nos caminhar a um futuro cheio de vida”, declamou o agricultor Wellington Schmil, do Sindicato dos Agricultores de Colatina, na sessão especial da Assembleia Legislativa.
Daniel Plaster, agricultor orgânico em Santa Maria de Jetibá, conta que a década de 1980 trouxe, no município, o auge da produção maciça de alho. “Não conhecíamos o veneno, éramos acostumados a produzir um pouco de café, mandioca, arroz e feijão para o consumo”, relembra. “Quando comecei a produzir alho, minhas pernas eram todas feridas. Tínhamos feridas de fazer medo. Não podíamos nem ir para a cidade porque o pessoal corria da gente”, relata. “Foi aí que começamos a nos preocupar porque nós, agricultores, estávamos morrendo por intoxicação. A partir daí, começamos a discutir essa questão e a tentar produzir sem usar veneno”.
Pois, ao longo desses trinta anos, os camponeses de norte a sul, leste a oeste, nas planícies e montanhas do Espírito Santo já provaram que é possível produzir mais e melhor sem venenos, através de métodos orgânicos e agroecológicos. As mais de uma dezena de feiras especializadas, funcionando na Grande Vitória de terça a domingo, são um oásis em meio ao turbilhão de venenos, ainda, predominantes nas gondolas dos supermercados e mercados de comercialização convencional.
Dados oficiais do governo federal dão conta de que cada brasileiro consome, em média, 5,2 litros de agrotóxicos por ano. É estarrecedor quando conseguimos visualizar o volume de agrotóxicos consumidos diariamente. Utilizemos uma comparação didática: o consumo per capita de sal no Brasil é de 12g, mais que o dobro recomendado pela Organização Mundial de Saúde (5g). Se essa quantidade do sal, que não é um tóxico, já causa tantos problemas de saúde, imagine a devastação provocada por um peso diário similar de substâncias que são, por si só, tóxicas! Pois o consumo de agrotóxicos no Brasil já é de mais de 13g/dia/pessoa!
Desde 2008, o país é o maior consumidor mundial de agrotóxicos! “É um mercado bilionário!”, exclama Lusinério Prezotti,. Segundo o do IFES de Santa Teresa, em 2014, o mercado de agrotóxicos brasileiro movimentou US$ 2,240 bilhões. E com um agravante: dos 50 ingredientes ativos mais utilizados na agricultura brasileira, 22 são proibidos na União Europeia. “E continuamos utilizando esses produtos no Brasil”, alerta.
Água potável?
Todos esses venenos, já condenados em muitos países, permanecem contaminando todo o ambiente por décadas. A água, por exemplo, que sofre análises periódicas, ao contrário do solo e do ar, sobre os quais não há monitoramento da presença dessas substâncias, mostra a gravidade da situação.
Ao invés de restringir a quantidade de resíduos tóxicos permitidos, as atualizações da legislação sobre potabilidade da água consumida pela população visam, ao contrário, aceitar cada vez mais resíduos. Em 2004, relata Lusinério, a portaria do Ministério Público responsável por definir os padrões de potabilidade, permitia a presença de 22 agrotóxicos. “Em 2011, esse número passou para 27; eram 13 substâncias inorgânicas e passou para 15; eram 12 substâncias orgânicas e passou para 15; e eram seis desinfetantes e passou para sete”, listou.
O também professor Rodrigo Scherer, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Universidade Vila Velha, faz coro a Lusinério, acrescentando que o tempo revela, inexoravelmente, os erros do passado. Usa como exemplo o DDT, um dos primeiros agrotóxicos sintetizados, muito utilizado na década de 1940 de maneira quase similar ao que vemos hoje nas ruas com o fumacê.
“O que se sabia em 1940 é que o DDT era a quinta maravilha do mundo. O que se sabe hoje é que ele causa câncer, comprovadamente. Foi banido já de todo o mundo e não pode mais ser utilizado. Será que amanhã as substâncias que comemos hoje também serão, comprovadamente, cancerígenas?”
“Resumidamente, não existe dose segura de veneno”, sentencia a nutricionista e professora do Grupo de Pesquisa DISSOA, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Elaine de Azevedo. Como alternativa à inércia do Estado em banir os agrotóxicos, Elaine enfatiza a importância crucial do consumidor consciente e engajado.
“Ao consumir e apoiar os orgânicos de origem familiar você age politicamente em dimensões que revertem em apoio à agricultura familiar; à proteção do meio ambiente; à saúde coletiva; e à promoção da economia local, além de fomentar a comida como um tipo de patrimônio cultural”, convida.