DPES alertou sobre urgência em titular território quilombola para dirimir conflitos. Ofício não foi respondido
Quatro dias antes da Suzano invadir a comunidade do Angelim II com dez máquinas de corte de eucalipto, as Defensorias Públicas Estadual e da União haviam enviado uma Recomendação ao governo do Estado alertando sobre a necessidade de medidas urgentes de proteção às comunidades quilombolas do Sapê do Norte, especialmente Angelim II, para evitar novos conflitos fundiários, que têm se intensificado desde o início da pandemia de Covid-19.
O mais recente ataque da papeleira – a maior do mundo em produção de celulose – contra as 35 famílias que vivem no Angelim II ocorreu da noite da última sexta-feira (11). As máquinas chegaram sem qualquer aviso prévio e adentraram o território quilombola tradicional, já certificado pela Fundação Cultural Palmares e em processo de titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), derrubando as árvores às margens do córrego Angelim, o único que ainda resiste ao monocultivo de eucaliptos e o deserto verde que foi iniciado nos anos 1960 pela Aracruz Celulose, ex-Fibria e hoje Suzano.
O alerta sobre o perigo iminente de mais violência contra as comunidades e o pedido de apoio e proteção, no entanto, havia sido enviado ao governo do Estado quatro dias antes, na segunda-feira (7), por meio da Recomendação nº 01, assinada pela Defensoria Regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União (DRDH/DPU), Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Estado (Nudam/DPES), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais de Quilombolas (Conaq), Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo (Coeq) e Comissão de Quilombolas do Sapê do Norte (CQSN). O documento continua sem resposta até o momento, segundo o Nudam.
Discorrendo detalhadamente sobre a vulnerabilidade das famílias do Angelim II, tanto fundiária quanto do ponto de vista da segurança hídrica e alimentar, a Recomendação pede, enfaticamente, que seja finalizado o processo de demarcação e titulação das terras, iniciado em 2003; e que seja reativado o Comitê Gestor Estadual das Comunidades Remanescentes dos Quilombos do Estado (Decreto Estadual nº 3007-R), com inclusão, no mesmo, de representantes das comunidades e das instituições que as defendem legalmente, de forma a garantir um canal permanente de diálogo.
Sobre a titulação das terras, o Nudam/DPES e demais signatários propõem que seja feito um convênio entre o Incra e o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), para verificar as áreas devolutas do Estado no território e providenciar a reversão das mesmas para os remanescentes de quilombos. E que os governos estadual e municipais – Conceição da Barra e São Mateus – dialoguem com o governo federal, cobrando celeridade na finalização do processo de titulação do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, localizado entre os dois municípios do norte do Estado.
Terra e água
O documento também pede providências específicas em relação à água, não só no Angelim II, mas em todas as comunidades que sofram com essa negação de direito fundamental.
As vulnerabilidades múltiplas que afetam o dia a dia das famílias do Sapê, expõem os defensores e lideranças quilombolas, favoreceram as invasões impingidas ao território desde 2013 e que, após intensificação durante a pandemia, chegaram a comprometer cerca de 80% do território em algumas das comunidades.
“Tais invasões seriam organizadas por ‘associações’, algumas até com envolvimento de milícias, causando medo e apreensão aos quilombolas, que se sentem acuados e limitados a uma pequena porção de terra, sem oportunidade de geração de renda”, relatam.
No caso do Angelim II, o território original de 750 hectares foi reduzido para menos de 65 ha, havendo a situação de 18 famílias adensadas em apenas um alqueire de terra (4,8 ha), ameaçando “a convivência comunitária e a manutenção das tradições”.
Os signatários ressaltam ainda que “os acordos internacionais assinados pelo Brasil reconhecem a titularidade das terras aos povos quilombolas como um direito coletivo e inegociável” e que “a finalização do processo de demarcação e titulação dos territórios quilombola da região é medida urgente e necessária para garantia da segurança desses povos, bem como da perpetuação das tradições quilombolas que envolvem o uso da terra de forma coletiva e sustentável”.
‘Desculpas’
Após o ataque de sexta à noite, somente no dia seguinte que as lideranças quilombolas conseguiram articular a chegada dos órgãos de Justiça de apoio, que deliberaram sobre uma reunião virtual com a Suzano nessa segunda-feira (14).
Na ocasião, a empresa pediu “desculpas” por ter entrado sem avisar no território e se comprometeu em participar de uma reunião marcada pelo Incra para a próxima quarta-feira (23), quando os novos mapas oficiais do Território do Sapê do Norte serão apresentados e, esperam as comunidades, a empresa se comprometa a, durante a colheita do eucalipto, não mais destruir o trabalho de recuperação ambiental feito pelas famílias em seu território, e a não mais plantar eucaliptos nos locais já reconhecidos como quilombolas. Até o momento, segundo os advogados da empresa, sequer essa promessa pode ainda ser feita.