Denúncias de crimes ambientais por empresários do setor imobiliário motivaram as agressões, registradas em evento público
“Num momento em que o Brasil chora a morte do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, no Espírito Santo, em Santa Teresa, o jornalista Bruno Lyra e a ambientalista Carmem Barcellos estão sendo intimidados e sofrendo ataques à liberdade de imprensa pela divulgação de irregularidades em parcelamentos de áreas rurais, degradação de solo, danos a fontes de águas e ao ecossistema”.
Assim Carmem inicia uma postagem em que divulga um link com uma dezena de documentos e duas dezenas de vídeos produzidos pelo portal de artigos e notícias fundado por ela, O Convergente, com base em denúncias anônimas relacionadas a possíveis crimes ambientais cometidos no interior do município, na região serrana capixaba.
“É assustador verificar, in loco, o tamanho do estrago no ecossistema do município teresense e o prejuízo que o município e cidades que dependem da água que nasce em Santa Teresa terão se não for feito algo maior do que apenas operações que pegam pequenos infratores, mas não os verdadeiros grandões. A sensação que muitos da população teresense têm é da impunidade e de descaso das autoridades competentes e dos órgãos fiscalizadores com o município”, alerta a ambientalista.
Denúncias nesse sentido já foram levada a público também por Século Diário, ao noticiar várias irregularidades ambientais ocorridas em Santa Teresa e municípios vizinhos, sem fiscalização e punição a contento por parte dos órgãos ambientais estaduais e municipais.
Para falar sobre os ataques sofridos pela dupla em função do trabalho de denúncia ambiental, o jornalista Bruno Lyra conversou com Século Diário e contou as medidas que ambos vêm tomando. O episódio de intimidação e agressão que sofreram ocorreu no último dia 3 de junho, durante solenidade do governo do Estado para lançamento dos editais para novas obras do Programa Caminhos do Campo no município, no valor de R$ 14 milhões.
Ele conta que havia terminado de entrevistar o governador Renato Casagrande [PSB] e o prefeito, Kleber Medici [PSDB], quando se virou e se viu diante do empresário Élcio Thomazini. “Como é sabido em Santa Teresa, Élcio Thomazini é um dos principais empresários do setor imobiliário que investe em loteamentos rurais e causam muitos desmatamentos, exposições de lençóis freáticos, ocupação de APPs [Áreas de Preservação Permanente], parcelamento desordenado do solo”, salienta.
“O prefeito tinha acabado de citar o Élcio Thomazini como um dos articuladores do pool de empresários que elaborou o projeto de pavimentação da Rota do Caravaggio, um dos trechos que o governo do Estado havia incluído no edital do Caminhos do Campo. Então perguntei a ele sobre o desafio de conciliar o crescimento de mercado com loteamentos rurais com a preservação ambiental. Ao invés de responder ou dizer que não queria responder, ele pegou meu telefone da minha mão e tentou desligar”, relata.
Enquanto o embate acontecia entre os dois em meio à multidão dos presentes à solenidade, o jornalista conta que outro empresário, Antônio Junior Macci, conhecido como Juninho Macci, proprietário da Jardinagem Serrana, se aproximou e passou a esbravejar.
“Eu tinha dito ao Thomazini que ele não podia fazer aquilo, pegar meu celular, tentar desligar. Daí o Juninho Macci chegou muito agressivo, dizendo que ele que queria falar comigo, que eu era autor de fake news. Eu respondi que não tinha condições de fazer entrevista devido à maneira agressiva que ele se dirigia a mim. Me afastei e disse que se ele continuasse eu iria chamar a polícia”.
Simultaneamente, em outro local do auditório, Carmem Barcellos também relatou que foi hostilizada por outro representante do setor imobiliário do município, Emerson Sancio, conhecido como “Dengo”, filho do presidente da Câmara de de Santa Teresa, Vanildo Sancio (PSB).
Bruno conta que “Dengo” se dirigiu a Carmem “visivelmente transtornando”, acusando-a de publicar fake news e dizendo que iria processá-la. Apesar das intimidações serem feitas diante do presidente da Câmara Municipal, este não tomou qualquer atitude contra os ataques deferidos pelo filho à articulista, ao contrário continuou “rindo” diante do ocorrido.
“Dengo’ também está parcelando o solo de forma desordenada no município. Já teve empreendimento embargado, porque fez intervenções além do que permitia a licença emitida pelo Idaf [Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo]”, afirma.
Liberdade de imprensa
Na ocasião, Bruno ressaltou no portal de notícias que o fato ocorreu às vésperas do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, 7 de junho, e que “esta violação é um símbolo de como alguns do poder econômico e político lidam com a imprensa, buscando tirar a liberdade do trabalhador jornalista”. E disse que tudo aconteceu a poucos metros do governador Renato Casagrande, do prefeito Kleber Medici e de outras autoridades, “mas não foi possível perceber que alguma dessas autoridades notou o que ocorria, uma vez que as pessoas se dispunham em grupos que conversavam entre si, fato típico ao que ocorre após solenidades desta natureza”.
Outros políticos que participaram da solenidade são citados: o ex-prefeito Claumir Zamprogno (PSB), os deputados estaduais Marcelo Santos (Podemos), Adílson Espíndula (PDT), Emílio Mameri (PSDB), Dari Pagung (PSB), e os federais Da Vitória (PP) e Paulo Folleto (PSB), além de vereadores e secretários de Estado.
Proteção
Também fragilizada, Carmem publicou um pedido de apoio: “Não deixem que matem um ambientalista para só depois darem voz às suas denúncias. Não deixem que silenciem um jornalista por falta de apoio. Basta a omissão de quem pode ajudar para conseguirem sufocar quem alerta. (…) Neste momento, precisamos do apoio e pronunciamento público de todas as autoridades e veículos de comunicação. Que estes apurem e repercutam o que está acontecendo conosco para que não sejamos calados. Para que não calem outras vozes de ambientalistas e jornalistas, como temos visto no Brasil. Não é necessário matar para que estas vozes sejam sufocadas, basta que a justiça não seja feita, o apoio seja negado e sejamos deixados sós. (…) A natureza e os que a defendem precisam de todos nós unidos. Não deixe que quem se oferece para lutar fique sozinho”.
Um outro ofício foi encaminhado por ela e Bruno na última terça-feira (14) a Casagrande, relatando o ocorrido e pedindo apoio para “combater as ameaças à vida de cidadãos ao praticar dever laboral ou no seu simples exercício de cidadania em pedir investigação de prováveis ilícitos em ações contra o meio ambiente e em denunciar crimes ambientais diversos, que vêm sendo praticados nos municípios do Espírito Santo e em especial no de Santa Teresa”.
O pedido, ressalta, é feito “em nossos nomes e no nome dos cidadãos que estão correndo risco de vida ao defender o meio ambiente de crimes ambientais, que colocam em risco a biodiversidade e os recursos hídricos da região, para determinar aos gestores da segurança pública no Estado promover a Segurança e a garantia de vida para todos”.
Justiça
Até o momento, os dois comunicadores de O Convergente procuraram a Polícia Civil e registraram Boletins de Ocorrência (BOs) e preparam a apresentação de uma Notícia de Fato ao Ministério Público Estadual (MPES). “Fui cerceado no meu trabalho de jornalista. Queria fazer uma apuração jornalística, estava num ambiente público, com autoridades políticas, e sofri essas intimidações e agressões. Eu e Carmem. Exigimos respeito aos nossos direitos legais de trabalhar. Queremos justiça”, roga Bruno.
O episódio em Santa Teresa, lembra, ocorreu dois dias antes do desaparecimento do jornalista inglês e do indigenista brasileiro no Amazonas. “Isso tudo me deixou ainda mais angustiado”, reflete. “O Brasil vive um momento de aumento dos ataques a jornalistas, inclusive encorajado pelo atual presidente da República [Jair Bolsonaro (PL)]. Eu fico muito triste com isso”, diz.
Solidariedade
Nessa quinta-feira (16), o pré-candidato ao governo do Estado pela Rede Sustentabilidade, Audifax Barcelos, publicou um vídeo ao lado de Carmem – que também é filiada à Rede – a quem chamou de “amiga particular”, “ambientalista de verdade” e “grande guerreira”.
“Você juntamente com o Bruno Lyra tem todo o meu apoio, porque eu estou sabendo do que está acontecendo aqui: desmatamento, as pessoas não estão cuidando da água, não estão cuidando da vida, e um dia todos nós vamos ficar prejudicados com isso. Não só Santa Teresa, mas o Espírito Santo de modo geral. Conte comigo, estou do seu lado, estou do lado do Bruno, estou à disposição como pré-candidato a governador”.
No dia anterior, o também pré-candidato ao Palácio Anchieta, Capitão Vinícius Sousa (PSTU), membro do grupo Policiais Antifascismo, também prestou solidariedade à dupla. “Carmem Barcellos e Bruno Lyra, repórteres ambientalistas da comunidade local, estão sob ameaça por denunciarem os fatos no Portal Convergente”, disse em sua página no Facebook, referindo-se a crimes ambientais cometidos por grandes empresários do município.
“144 multas já foram aplicadas em operações de militares do BPMA [Batalhão da Polícia Militar Ambiental] e técnicos do Idaf, e a destruição da floresta em Santa Teresa não para de avançar”, destacou. “Ou muda radicalmente o sistema político, ou seguiremos na desvantagem, dominados por uma elite econômica sem escrúpulos, parasitária, privatista, preguiçosa e lesa-pátria, que nada produz e tudo explora”, afirmou.
Violência contra jornalistas segue crescendo no Brasil
A violência contra jornalistas integra uma tendência de crescimento no Brasil. Especificamente em relação a pautas ambientais, o Observatório do Clima ressaltou, em reportagem publicada no site ((o))eco nessa quarta-feira (15), intitulada “Amazônia em guerra: morte de Dom e Bruno escancara situação de abandono de Terras Indígenas do país”.
“O Brasil, um dos países que mais matam ativistas ambientais no mundo, vê se repetir no Javari a tragédia de Chico Mendes, Dorothy Stang, João Cláudio e Maria e tantos outros que confrontaram e confrontam os criminosos que atormentam os povos e saqueiam a floresta na Amazônia. No governo Bolsonaro, porém, a barbárie tem cúmplices no Palácio do Planalto e nas Forças Armadas.”
Analisando violências motivadas por outras temáticas, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) também enfatizou a relação entre extrema-direita e aumento dos ataques à imprensa no país.
O último relatório sobre o assunto foi lançado no início de maio, marcando o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Segundo o estudo, “entre 2019 e 2021, o total de casos de violência contra jornalistas no Brasil somou 1.066 ocorrências”.
O número, sublinha, é maior do que a soma de todos os episódios registrados entre os anos de 2010 e 2018, que totalizaram 1.024. A comparação, que permite evidenciar a escalada da violência contra jornalistas no país, consta no dossiê Ataques ao Jornalismo e ao Seu Direito à Informação.
“Na ponta do lápis, a média é de 365 ataques a jornalistas por ano no Brasil, nos últimos três anos, o que significa praticamente um ataque por dia”, destacou a Fenaj. “Esse cenário não deve preocupar só jornalistas porque, na medida em que os jornalistas são afetados, a qualidade do seu trabalho também vai ser afetada”, pontuou o professor Rogério Christofoletti, pesquisador do objEthos e um dos organizadores do dossiê.
Segundo o pesquisador, a qualidade, integridade e atualidade da informação podem ser comprometidas em situações de risco, em que repórteres precisam se blindar para poder atuar e levar as informações para a população. Só em 2021, um terço dos casos detectados pela Fenaj foi de censura.
No relatório de 2021, o aumento registrado em relação a 2019 foi de 105,7%, ou seja, mais que o dobro. Na ocasião, a presidente da Fenaj e membro do Comitê Executivo da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), Maria José Braga, afirmou que esse crescimento está diretamente ligado “ao movimento político de extrema-direta, capitaneado pelo presidente Jair Bolsonaro, que repercute na sociedade por meio dos seus seguidores”.
Maria José, responsável pela análise dos dados levantados pela Fenaj, aponta que “houve um acréscimo não só de ataques gerais, mas por parte desse grupo que, naturalmente, agride como forma de controle da informação” e que “eles ocorrem para descredibilizar a imprensa, para que parte da população continue se informando nas bolhas bolsonaristas, lugares de propagação de informações falsas e ou fraudulentas”.