Em meio às negociações sobre devolução da concessão pela Eco101, em jogo o fim da “chacina da fauna silvestre”
Um acréscimo de 56,7 km de estrada para pôr fim à “chacina da fauna silvestre”, provocada pela presença de uma rodovia federal dentro do maior maciço de Mata Atlântica de Tabuleiro do País. Em tempos de crise climática e de sobrecarga cada vez mais acentuada dos recursos naturais do planeta, uma pauta dessa magnitude deveria mobilizar forças políticas, sociais e científicas de forma a blindar esse objetivo, em meio às negociações referentes ao anúncio de desistência da concessão, feita pela Eco101, no último dia 15. O assunto, no entanto, ainda é secundário, reduzido ao circuito ambientalista e científico. Os holofotes, por ora, se concentram em cálculos que, a princípio, não consideram a dinâmica ambiental.
Em resposta à decisão da concessionária, o deputado Da Vitória (PP), coordenador da bancada capixaba na Câmara Federal, anunciou intenção de criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). “Não vamos aceitar que a empresa saia dessa forma, sem cumprir o seu contrato ou devolver o dinheiro para os capixabas”, disse o parlamentar no dia 18, quando já estava dedicado a recolher assinaturas para abertura da investigação.
Já o governador Renato Casagrande (PSB), desde então, se colocou a serviço de encontrar soluções que reduzam o impacto da devolução da concessão, com foco no cronograma das obras, cronicamente atrasado pela concessionária, mesmo em regiões onde não há impasse ambiental.
Ocorre que, pouco mais de dois meses antes de falar em desistir do contrato, a Eco101 havia entregue, também com muito atraso, o estudo pedido seguidas vezes pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre as alternativas locacionais para o trecho de 25 km da estrada que cortam a Reserva Biológica (Rebio) de Sooretama e sua zona de amortecimento.
Trecho que, desde que foi construído ao arrepio da legislação ambiental então vigente, interfere diretamente na integridade do imenso bloco florestal que a Rebio forma com a Reserva Natural da Vale e três pequenas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). É o maior fragmento, em todo o Brasil, desse tipo de Mata Atlântica, bioma que é o mais ameaçado do país e resiste em apenas cerca de 17% de sua cobertura original.
O documento está disponível para consulta pública por qualquer cidadão que faça a solicitação ao Ibama, via Lei de Acesso à Informação (LAI), sob o número 12493528. Em suas 129 páginas, incluindo dezenas de mapas anexos, o estudo compara o atual traçado com outras três opções possíveis para o trecho hoje compreendido entre os KM 91 e 161 da BR. Além da proteção das florestas, o estudo locacional visa também atender ao pedido feito pela Prefeitura de Linhares para retirar a estrada de dentro da sua sede.
A Alternativa 1 refere-se ao traçado inicial; a Alternativa 2 propõe um desvio do centro de Linhares a leste; a Alternativa 3 atende ao desvio a oeste das florestas; e a Alternativa 4 mostra outro possível desvio da cidade, mas a oeste, bem próximo do traçado atual.
Um quadro comparativo traz a quilometragem a ser percorrida pelos usuários da via em cada uma das situações, bem como os respectivos valores estimados para as obras de duplicação: 1) 70km e R$ 455 milhões; 2) 81,3km e R$ 563,2 milhões; 3) 138km e R$ 2,24 bilhões; e 4) 70,3km e R$ 349,35 milhões. A diferença entre as distâncias a serem percorridas nas alternativas 2 e 3, defendidas, respectivamente, pela empresa e pelos cientistas, é de 56,7 km.
Após a exposição de diversas outras variáveis, agrupadas em “especificações técnicas”, “meio físico”, “meio biótico” e “meio socioeconômico”, a Eco101 conclui que a Alternativa 3, o contorno a oeste das florestas, é de impacto “Médio Alto”, enquanto as demais de impacto “Médio Baixo”.
No texto, a concessionária recomenda descartar então a opção 3. “A Alternativa 3, que tem sido objeto de muita discussão, tendo em vista as exigências já explicitadas pelo órgão ambiental, além dos gestores locais das Unidades de Conservação, para total afastamento do complexo de Áreas Protegidas da região mais próxima do litoral, apresentou, não obstante alguns elementos ambientais analisados, a classificação final de impacto Médio Alto, sobretudo pela grande extensão, valor do empreendimento, grande número de desapropriação, alteração na dinâmica dos deslocamentos pendulares e interferências em áreas de cultivo”.
As demais alternativas, afirma, “podem causar níveis de impacto semelhante, porém passíveis de mitigação ou compensação, mediante as medidas adequadas de engenharia, e todo o tratamento ambiental e socioeconômico indispensável à abertura e implantação de trechos rodoviários”.
Entre elas, “a Alternativa 2 mostrou-se mais viável”, afirma a empresa, ressaltando algumas especificidades sobre as outras duas. A Alternativa 1, alega, encontra, entre outros, o empecilho da não anuência do município para a duplicação dentro do núcleo urbano e da não anuência do ICMBio para duplicação dentro da Rebio Sooretama e sua zona de amortecimento. Já a Alternativa 4, afirma, esbarra no fato de que “não contorna todo o núcleo urbano do município de Linhares em razão das limitações impostas pelo Aeroporto e Lagoa Juparanã”.
A opção pela Alternativa 2, prossegue, reside no fato de “poder contornar a área urbana de Linhares, sem, contudo, se afastar muito dela, a ponto de transformar esse acesso inadequado às finalidades previstas, e também garante a acessibilidade e segurança do tráfego local de forma definitiva e a devida proteção dos ecossistemas próximos”.
Respeito ao meio ambiente
Integrante do grupo de cientistas e ambientalistas que desde 2014 apresentam dados e argumentos a favor da retirada da estrada de dentro da floresta, o professor doutor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Aureo Banhos conclama uma mobilização que retire a invisibilidade que encobre a relevância regional e global da pauta.
“Essa rodovia tem promovido uma chacina, uma alta mortandade de animais naquele trecho. Isso não é uma fatalidade, não é acidente, é uma coisa que acontece diariamente e pode ser evitada e reduzida, se as medidas corretas forem adotadas, medidas que já sugerimos em 2014″, afirmou o cientista a Século Diário no início de junho.
Um mês depois, numa primeira análise do documento entregue pela concessionária, o pesquisador reforça a súplica.”Tem que haver um esforço da sociedade para tirar essa rodovia BR-101 de alto fluxo crescente de veículos de carga e pessoas do interior deste que é o maior complexo florestal em biodiversidade e em serviços ecossistêmicos no Corredor Central da Mata Atlântica. Manter essa rodovia federal naquele cenário, contra a legislação e após um processo de licenciamento ambiental, quando se tem oportunidade de alocar em outro lugar, é ser conivente com o erro que foi ter colocado essa rodovia naquele cenário à revelia da legislação da época”.
Além disso, prossegue, “manter essa rodovia BR-101 naquele lugar é ferir os esforços daqueles servidores públicos e ambientalistas que trabalharam para legar à sociedade capixaba, brasileira e mundial essa área protegida; é rasgar os atos administrativos do poder público que a criou; e é uma falta de respeito com o meio ambiente”.