Pesquisa mostra perfil dos “guardiões de sementes crioulas” e o papel do consumidor para manter viva essa cultura
Até o início da década de 1970, o jovem agricultor pomerano Lorival Haese não conhecia outro tipo de sementes que não as “crioulas”. A família plantava de tudo para a subsistência e comercialização de excedentes a partir de sementes genuínas, tradicionais. Aos poucos, sementes híbridas, fabricadas em larga escala pelas grandes empresas de insumos agrícolas, começaram a se espalhar na região, sob a promessa de serem mais produtivas. Era a “modernidade” chegando ao meio rural, embalada em agrotóxicos, adubos sintéticos e maquinário típico da chamada “Revolução Verde” – na verdade uma estratégia comercial para dar vasão às armas químicas desenvolvidas para a Segunda Guerra Mundial.
Apesar da ofensiva montada para industrializar a agricultura, envolvendo o sistema bancário e o aparato estatal de amparo aos agricultores e tão bélica quanto a própria guerra que a precedeu, a “Revolução Verde” não venceu as sementes crioulas nem a agricultura orgânica/agroecológica, naturalmente praticada até então. As raízes da agricultura genuína se mantiverem saudáveis, sustentaram uma resistência a princípio mais íntima e silenciosa, para em seguir romper o discurso hegemônico e iniciar uma retomada grandiosa de seu espaço na vida das famílias do campo e da cidade.
“Até os vinte anos, eu não conhecia outra semente não, era tudo crioula. A gente plantava milho, arroz, feijão, tudo. Em 1971, 1972…comecei a conhecer outras sementes, híbridas. A gente foi plantando, dava até bem, mas não adiantava plantar de novo, tinha que comprar mais todo ano. Vimos que não valia a pena”, relata Lorival, rememorando os tempos de rapaz, junto ao pai.
Hoje reconhecido como um dos expoentes da agricultura orgânica em Santa Maria de Jetibá, à frente do Sítio Haese, e um dos pioneiros na primeira feira orgânica da capital capixaba, no Barro Vermelho, Lorival conta que as sementes crioulas se mantiveram vivas em sua família, sempre mostrando sua superioridade, em todos os sentidos. “Para o pequeno agricultor familiar, orgânico, a crioula é mil vezes melhor. São mais saborosas. Para tratar das criações também é melhor, porque o milho transgênico dá doença nos animais. Eles ficam doentes, a gente nem descobre o que é, e eles já morrem”, elenca.
Antigo estudioso da agrobiodiversidade brasileira, João decidiu mergulhar no aspecto social que sustenta as sementes crioulas, até para identificar o que ainda existe e o que foi perdido, e principalmente, para apontar formas de fortalecer essa tradição. O estudo foi feito na região serrana do Espírito Santo, em comunidades rurais dos municípios de Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins e Laranja da Terra, e “conseguiu mapear padrões e identificar as famílias guardiãs, o que é importante pra apontar caminhos para apoia-los”.
A agroecologia, a venda direta e o associativismo formam um tripé que define o perfil dos guardiões. E a origem pomerana surgiu como outra característica de relevo. “As famílias pomeranas foram a maioria entre as apontadas como guardiãs nesses três municípios”, conta.
“Tenho prazer de ser útil, em ouvir o pessoal, dizer ‘pode deixar com o Ernesto que não vai perder’. Quando você consegue conservar uma semente, uma muda que outro agricultor acabou perdendo, isso dá uma alegria enorme, uma sensação de dever cumprido”, relata.
Durante a pesquisa, uma outra motivação para o trabalho de guardião despontou. “Quando fui indicado para colaborar com doutorado do João, me dei conta do motivo de eu me interessar e guardar sementes: criar amigos. O João foi a primeira pessoa que me chamou de guardião. Me senti reconhecido pelo trabalho de garimpar, experimentar, selecionar, trocar e compartilhar sementes”, depõe.
Na Assembleia Legislativa, tramita desde o ano passado um projeto de lei da deputada Iriny Lopes (PT) objetivando criar a Política Estadual de Incentivo à Formação de Bancos Comunitários de Sementes e Mudas de Variedades e Cultivares Locais, Tradicionais ou Crioulos (PNIBCS). O PL retoma uma iniciativa abortada em 2017, mas que não avança, devido ao baixo interesse dos parlamentares, ainda majoritariamente representantes dos interesses do agronegócio.
Pertencimento
Em seu estudo, foi possível obter uma quantidade pequena de testes, com apoio da Superintendência capixaba do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Aplicados ao milho branco, usado tradicionalmente pelos pomeranos para a produção do brote, pão tradicional pomerano feito com milho e raízes. “Graças a Deus o milho branco não foi contaminado”, celebra.
A investigação sobre contaminação com transgênicos feita no doutorado de João está tendo continuidade, de forma mais abrangente, por meio de uma iniciativa do Fórum Espírito-Santense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (Fesciat) e parceiros, e pretende identificar onde e como possivelmente essa contaminação ocorre no Estado.
O trabalho secular de conservação empreendido intuitiva e dedicadamente pelas famílias, reafirma o pesquisador, “não é só bonito e útil para a sobrevivência”. As sementes genuínas, acentua, para muito além das cores, aromas e sabores que oferecem à humanidade, conservam a história e a cultura dos povos.
Tesouros, lamenta, que estão se perdendo, devido à desigualdade de forças: a ofensiva bélica do agronegócio, de um lado; e o trabalho artesanal e espontâneo das famílias e consumidores de outro. É preciso um trabalho de “reverência e reconhecimento dos guardiões”, que ainda não existe do ponto de vista institucional. As instituições precisam se inserir nessa rede, conservando o que as famílias não conseguem manter por meio da dinâmica on farm, aponta João, citando as fazendas do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) como espaços privilegiados para cumprirem essa missão.