Carlos Gustavo visitou criadores no ES para estudo internacional, com base na Suíça, sobre microbiota intestinal
O que o estudo da microbiota intestinal – bactérias que vivem nos intestinos – das abelhas sem ferrão pode revelar sobre os alimentos e fatores ambientais benéficos e prejudiciais a elas? Sobre o estado de equilíbrio/degradação das florestas e da agricultura onde cada grupo vive? Sobre potenciais probióticos e medicamentos para tratar a saúde desses animais? Sobre produtos alimentícios e medicinais para humanos? Sobre a evolução das abelhas sem ferrão ao longo das eras? Sobre como o eixo cérebro-intestino afeta seu comportamento? Sobre pistas para entender também o eixo cérebro-intestino humano?
As perguntas e possibilidades são muitas e a ciência está apenas começando a desvendar os mistérios que envolvem o organismo e a ecologia desses fantásticos polinizadores, fundamentais para o equilíbrio do planeta.
Em busca de respostas, um grupo de pesquisadores desenvolve um estudo internacional sobre a microbiota intestinal das abelhas sem ferrão – Global bee microbiome profiling: Causes and consequences of host specificity in gut microbiomes, ou “Perfil global do microbioma de abelhas: causas e consequências da especificidade do hospedeiro nos microbiomas intestinais” – na tradução livre para o português –, colhendo amostras de dezenas de espécies nos quatro cantos do mundo, que são examinadas no Laboratório de Microbiologia de Abelhas do Departamento de Microbiologia Fundamental da Universidade de Lausanne, na Suíça.
O estudo é financiado pela Fundação Nacional de Ciência da Suíça e tem parcerias com diversas instituições, entre universidades, institutos de pesquisas e associações de meliponicultores. Ele teve início em 2019, por meio da pesquisa de pós-doutorado do cientista brasileiro e consultor do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) Carlos Gustavo Nunes da Silva, agora integrante da Associação de Meliponicultores Capixabas (Amecap). O trabalho focou primeiramente na Amazônia, mas logo se tornou mundial, estendendo-se para outros biomas brasileiros e de outras regiões tropicais do globo.
Nessa fase, para além da Amazônia, as coletas foram feitas em meliponários do Espírito Santo e Rio de Janeiro. O trabalho é autorizado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por meio de uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), cujas portas foram abertas pela professora Karen Haag, pesquisadora renomada de abelhas. O primeiro artigo foi publicado este ano.
Na entrevista a seguir, Carlos Gustavo fala sobre a presença das abelhas sem ferrão no mundo e no Brasil, o andamento do estudo Global Bee e a importância da meliponicultura feita por pequenos criadores, perfil majoritário no Espírito Santo, para salvar espécies do risco de extinção.
Dr. Carlos Gustavo, qual o lugar do Brasil no cenário mundial das abelhas sem ferrão e como as abelhas brasileiras e capixabas participam do estudo?
Primeiro é preciso dizer que a maior diversidade de abelhas sociais está entre as sem ferrão. As abelhas com ferrão são de apenas um gênero, Apis, e totalizam sete espécies. As sem ferrão possuem uma dezena de gêneros e algumas centenas de espécies, aproximadamente 500 no mundo. Dessas, a maioria ocorre na América do Sul, cerca de 400, quase todas elas no Brasil. O Brasil é o detentor da maior diversidade de espécies de abelhas sem ferrão do mundo.
Então existem abelhas não sociais também?
A maioria das espécies é não social, solitária. Mais de 20 mil. Apenas1 a 2% do total de abelhas do mundo tem comportamento social ou gregário, comunitário.
E o que caracteriza um comportamento social?
Precisa ter divisão de trabalho por faixa etária, funções e castas, pelo menos de operárias e rainhas, e por sexo. As abelhas não sociais têm ninhos, não formam enxames e colmeias. São as mamangavas, abelhas das orquídeas, abelhas carpinteiras e de chão. As sociais também podem nidificar em diferentes lugares, além de formaram colmeias. Em florestas em clímax, nidificam em ocos de árvores. Na região periurbana e outras regiões onde não há muita floresta, elas começam a procurar lugares alternativos, em muros, em postes, em marcenarias, ocupando ocos em geral. E tem as que não ocupam ocos, fazem a cachopa, que é um ninho em lugar externo, como cupim. Tem ainda as abelhas sociais que fazem ninhos subterrâneos, como as formigas.
Mas o conhecimento científico prioriza as sociais, já que elas que produzem mel, correto?
As não sociais também produzem, assim como outros insetos, como marimbondos, mas em quantidades muito pequenas. E se sabe mesmo muito pouco sobre esses animais. Assim como também se conhece quase nada sobre a maior diversidade de abelhas sociais que existe no planeta, que são as nativas do Brasil.
Por que a escolha de estudar o intestino desses animais?
Se você consegue descobrir a microbiota [flora intestinal ou bactérias que vivem no intestino] que faz funcionar o intestino de um organismo, consegue entender o que é bom para esse organismo. Como as abelhas sem ferrão têm divisão de trabalho, de sexo, de castas e tudo operando de maneira ordenada, a alimentação é condição sine qua non para ter essa estrutura social em harmonia.
Se entendemos o que é bom para as abelhas, podemos inferir dados sobre as nossas florestas, a agricultura que se faz em volta das colmeias. E se descobrimos o que afeta uma abelha, que é um organismo social muito pequeno, e tem um cérebro e um intestino muito menor que o nosso, isso pode ser um modelo científico para o ser humano. Segundo estudos sobre as Apis, existem apenas oito bactérias nos intestinos delas. Nas sem ferrão, existem também algumas poucas principais. Uma bactéria oferece um produto para a outra comer, e, em cadeia, elas vão liberando metabólitos de importância essencial para as abelhas.
Ao entender como funciona a relação entre essas poucas bactérias residentes, a gente consegue extrapolar isso para o ser humano. No ser humano são centenas de bactérias residentes e a gente não consegue isolar cada uma delas. Entender o mecanismo nos insetos dá uma fagulha de entendimento do que acontece na gente e em outros mamíferos.
Estudando os microrganismos da microbiota intestinal também podemos entender como as abelhas evoluíram. Se microorganismos são tão importantes, como sabemos, certamente eles forjaram a evolução dessas espécies.
O caráter social dessas abelhas e dos seres humanos também permite estabelecer semelhanças?
A gente tem muito mais espécies de abelhas solitárias do que de sociais, mas em população, as sociais são maioria. Uma única colônia tem cinco mil abelhas…multiplicado pelo número de colônias de cada uma das 500 espécies que existem…é mais vantajoso estar em sociedade, por isso a espécie humana sobreviveu, porque viveu em sociedade.
É possível também desenvolver medicamentos a partir desses estudos?
Sim, ao descobrir os microrganismos benéficos, que sejam probióticos e que vivem com as abelhas, e os microrganismos nocivos, podemos inferir, mais à frente, sobre probióticos interessantes para tratar a saúde das abelhas.
Todo organismo vivo tem microrganismos associados. Ser humano, jabuti, elefante, minhoca…muito do que cada um é se deve aos microrganismos que eles contêm. Até o comportamento é baseado na microbiota, inclusive de abelhas. As preferências alimentares também são por conta dos microrganismos que elas têm dentro do intestino, mas a gente não conhece nada ainda sobre isso.
A meliponicultura caminha para encontrar esses medicamentos baseados nos microorganismos, assim como já acontece na apicultura.
Num momento posterior, é possível usar os microrganismos das abelhas, que trabalham na digestão de carboidratos e lipídios, também em seres humanos. Hoje já se tem um pólen fermentado de abelhas sem ferrão como isca para fermento de pão, por exemplo.
O estudo Global Bee começou quando? E qual seu principal diferencial ou pioneirismo?
Começou em 2019, com a minha pesquisa de pós-doutorado. Depois de eu ter sido pesquisador visitante na Alemanha, na Universidade de Hohenheim, o professor Philipp Engel, na Universidade de Lausanne, na Suíça, tomou conhecimento do meu interesse pelo assunto, microbiota de abelhas, e fui apresentado a ele pelo professor Martin Hasselmann, da Hohenheim. A partir daí as coisas começaram a se encaixar e, pela Universidade Federal do Amazonas e de um projeto da Capes, eu consegui uma bolsa e fui fazer o pós-doc lá na Universidade de Lausanne.
Um estudo anterior ao nosso, de Moran e Kwong, em 2016, comparou microbiotas de abelhas, mas foi mais especulativo, nós fomos mais detalhistas. Nossos resultados confirmaram alguns achados e trouxeram muita novidade. Combinamos o perfil da comunidade de micro-organismos com o cultivo e sequenciamento do genoma das bactérias intestinais de seis espécies amazônicas de abelhas sem ferrão. Isolamos os micro-organismos e sequenciamos seus genomas completamente. Descobrimos novas espécies e até novos gêneros, ainda por publicar.
As análises são feitas no laboratório do professor Philipp. Foi dele a ideia de expandir para além da Amazônia e ter uma abrangência global, em todas as regiões tropicais do planeta: América Latina, África, Sudeste Asiático e Austrália. Para isso, contamos com uma força-tarefa grande, com colaboradores do mundo inteiro.
Os colaboradores fornecem as abelhas e, no laboratório, abrimos o intestino, cultivamos as bactérias em diferentes meios de cultura e sequenciamos o DNA dessas bactérias. Com essa metodologia, vamos saber quais bactérias existem e como elas atuam no organismo nas abelhas.
Onde foram feitas as coletas no Brasil?
Comecei pelo Rio de Janeiro e Espírito Santo. Aí, teve a parceria com a Amecap [Associação de Meliponicultores Capixabas] e também com o Ifes [Instituto Federal] de Santa Teresa, com o professor Eduardo Antonio Ferreira, e com o professor Vander Tosta, da Ufes [Universidade Federal do Estado] em São Mateus.
A ideia é coletar em todas as regiões do país, por meio da rede de colaboradores. É muito importante uma boa relação com os colaboradores. Nós temos uma autocrítica sobre essa dificuldade que a maioria dos cientistas tem de retornar à comunidade sobre as pesquisas das quais elas participam. A divulgação cientifica é muito limitada. No Global Bee nós queremos fazer um trabalho de divulgação e dar um selo ou algum tipo de certificado para os colaboradores que fizerem as coletas e dar o feedback sobre tudo o que ocorrer na pesquisa.
Nossas coletas são pequenas, dez abelhas de cada espécie, de duas a três colônias, mas a gente faz questão de dizer para onde estão indo as abelhas, quem vai ver, mostramos todos os documentos do ICMBio e outros órgãos. Queremos muito dar uma devolutiva aos colaboradores, colocar nos agradecimentos das publicações.
Os meliponicultores parecem ter uma importância fundamental nessa rede de pesquisa e proteção das abelhas.
A meliponicultura tem se tornado um precioso instrumento para tirar as abelhas sem ferrão de listas de vulnerabilidade ou risco de extinção. Um exemplo no Brasil ocorre em Santa Catarina, com a guaraipo. Ela estava quase extinta, mas tem sido reintroduzida por meliponicultores. No Espírito Santo, isso pode acontecer com a Melipona capixaba. A meliponicultura capixaba está trazendo essa espécie de volta para as áreas rurais. A gente não recomenda tirar do hábitat, mas quem já tem a abelha por criação, pode continuar esse trabalho. Nossos indígenas já criavam abelhas nos quintais, então elas têm acompanhado a nossa cultura e sociedade.
É preciso lembrar que toda atividade humana na natureza tem prós e contras. Se pensar direito, a apicultura, que trabalha com uma abelha introduzida, também é considerada uma atividade competitiva com as nativas. Se formos a ferro e fogo, vamos proibir um monte de coisas.
A verdade é que é muito importante ter criação de abelhas nativas, porque era a única que se criava aqui antes de Pedro Álvares Cabral chegar.
Como a meliponicultura atua nesse sentido?
As abelhas sem ferrão estavam sendo extintas, porque, sem conhecimento, as pessoas cortavam árvores para ter madeira e colhiam o mel. A cultura da Apis ficou tão arraigada, que muita gente pensa que o padrão dessa espécie é o mesmo das nativas. Mas as abelhas sem ferrão não vão para outro ninho se o delas é destruído, elas morrem. A rainha da Apis voa e faz outro enxame em outro lugar. A nativa não. Quando o abdômen da rainha cresce para comportar os ovos e o sêmen dos machos, a asa dela não cresce mais, então ela não voa mais, ela usa a asa para sinalização, dispersão do ferormônio…mas não para voar. Então ela não pode se mudar com o seu enxame. Quando alguém pega mel ou derruba a árvore que tem um ninho, matava a colônia. É equivalente a matar um animal selvagem.
A meliponicultura faz a reposição das espécies na natureza e promove o intercâmbio genéticos entre os grupos e espécies, todo um trabalho de diversificação do plantel de abelhas entre as espécies do mesmo bioma. As abelhas entre Domingos Martins e Alegre, por exemplo, na região das montanhas capixabas. Se as matas estivessem interligadas, um dia, naturalmente, elas se encontrariam e se beneficiariam dessa biodiversidade de uma e outa. Hoje a degradação ambiental não permite. Os meliponicultores é que fazem esse trabalho.
O perfil de pequenos criadores, que predomina no Espírito Santo, tem uma especificidade também nesse trabalho de proteção e diversificação genética?
Eles atuam de forma mais regionalizada e isso se assemelha ao que a natureza faz. Os biomas devem ser mais estudados para que se possa trabalhar dentro do que a natureza já vem fazendo. Levar uma abelha do Rio Grande do Sul para o Nordeste não me parece fazer sentido, não coaduno dessa proposta. Quem costuma agir assim são criadores que atuam como zoológicos. O problema é que não se sabe o quanto isso é problemático para o meio ambiente, em nome do negócio. Mas também não defendo que se deva proibir imediatamente qualquer atividade que tenha esse perfil. Talvez regulamentar o que já existe, para evitar matança de abelhas e comércio ilegal. É muito complexo e não sou especialista nisso. Tem abelhas que ocorriam no Brasil todo e hoje só na Amazônia, tendo entrado em extinção em outros lugares …
Então, em alguns casos, percorrer longas distâncias não seja tão prejudicial.
É preciso uma análise muito cuidadosa.
No Espírito Santo, a regulamentação da Meliponicultura está sendo conduzida pelo governo do estado de forma a inviabilizar a participação dos pequenos criadores. Isso é um equívoco, na sua opinião?
A meliponicultura deve ser regulamentada sim, como qualquer atividade humana, mas desde que essa regulamentação seja feita escutando quem cuida das abelhas, quem as está trazendo de volta para o cenário, retirando do risco de extinção. E o trabalho de reintrodução tem que ser feito com parcimônia, com a colaboração da academia e dos meliponicultores. Concordo muito com a ciência feita com o produtor. Existe ciência feita por eles. Vi no YouTube recentemente um trabalho de descrição de comportamento, um vídeo gravado por um meliponicultor, mostrando o macho se preparando para acasalar. Com a ciência e os produtores unidos, todos saem ganhando.