Variedade criada em assentamento resistiu melhor à seca e a altas temperaturas do que as transgênicas e híbridas
O milho crioulo foi quem teve o melhor desempenho na safra colhida neste mês de março em Muqui, do que as variedades híbridas e transgênicas, mostrando-se mais resistente à seca e às altas temperaturas que marcaram o final do ano de 2023 na região.
A constatação é do engenheiro agrônomo, doutor em Produção Vegetal pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e consultor em Desenvolvimento Rural, José Arcanjo Nunes. “Não temos o dado cientifico, mas a palavra dos operadores das máquinas da prefeitura que fazem o beneficiamento do milho. O que eles relatam é que o milho beneficiado no município é o milho crioulo. Os outros milhos – transgênicos e híbridos – tiveram uma produção baixíssima, uma perda ainda maior”, afirma.
O conjunto das três variedades crioulas cultivadas no município – sem agrotóxicos e, em muitos casos, de forma orgânica, como convém a todo plantio crioulo – também teve uma perda grande, de 60% a 70%, decorrente das condições climáticas adversas, principalmente no mês de novembro. Mas, nas plantações de transgênicos e híbridos, que demandam doses robustas de pesticidas e outros insumos químicos, os resultados foram bem piores.
Atualmente, Acanjo presta consultoria para a Prefeitura de Muqui, município onde, há trinta anos, iniciou as pesquisas para o resgate das sementes crioulas locais, junto com os agricultores familiares da região de Fortaleza. O trabalho é referência na América Latina e voltou a ter apoio municipal sob a gestão do atual prefeito, Helio Carlos Ribeiro Cândido, o Cacalo (PSB).
“A prefeitura comprou no ano passado 1,6 tonelada de sementes crioulas, de três agricultores e duas agricultoras. Dos cinco, quatro são assentados da reforma agrária. E distribuímos para assentamentos e outras comunidades. Quem conseguiu produzir está batendo o milho agora e depois vai fazer a devolução para a prefeitura, através de fubá para escolas e instituições sociais”, descreve Arcanjo, sobre um modelo de parceria que já foi implementado em anos anteriores com muito sucesso.
Das três variedades crioulas cultivadas hoje, a Aliança 01 teve um desempenho ainda melhor. Ela e a Aliança 02 foram criadas em 2001 por um casal de agricultores, Patrícia Mendes de Oliveira Viana e Valter Viana, então moradores do Assentamento 17 de Abril. Nesse e demais assentamentos do município, o cultivo é feito de forma orgânica, assim como em muitas propriedades rurais de agricultura familiar, afirma. Há casos em que não segue à risca a cartilha orgânica, mas em todas, o uso de agrotóxicos é totalmente descartado.
“O Aliança 01 foi desenvolvido a partir de duas variedades de milho, a Sol da Manhã e a Emcapa 201. O casal plantou 5 kg de cada uma em 2001 e, a partir daí, fizeram vários ciclos de seleção, pelo menos dez ciclos, chegando até a variedade Aliança 01”, explica o cientista.
O Sol da Manhã, por sua vez, foi desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por assentados do Assentamento Sol da Manhã, em Seropédica/RJ, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a partir da seleção de plantas que apresentaram melhor resistência à seca. “A Embrapa descobriu que o milho Sol da Manhã é a variedade mais tolerante à seca, pois possui um gene latente que paralisa as atividades metabólicas quando a planta tem estresse hídrico e volta a funcionar quando ela tem água de novo, seja por irrigação ou pela chuva”, conta.
Daí, o casal do Assentamento 17 de Abril pegou esse milho com gene latente para estresse hídrico e misturou com o Emcapa-201, uma variedade muito produtiva, desenvolvida pela então Empresa Capixaba de Pesquisa Agropecuária (Emcapa), atual Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper).
Os registros científicos, relata, apontam uma produtividade de 9,8 toneladas de grãos por hectares para a Emcapa-201 e de 7,5 toneladas/ha para a Sol da Manhã. Tudo isso em um sistema orgânico de produção. Da junção das duas, o casal criou uma variedade nova, a Aliança 01, que é muito resistente à seca e também muito produtiva.
“Eu acompanhei a roça do Jussimar Pereira de Almeida e uma coisa que me chamou atenção foi que ele foi plantado em consórcio com a lavoura de café, o que aumentou a competição por água naquele contexto de estresse hídrico elevado. E, ainda, assim, ele conseguiu 4 mil kg por hectare, bem mais do que as variedades não crioulas da região”, ressalta.
“O nutriente que a planta mais necessita para o desenvolvimento é o nitrogênio. Mas se faltar água, falta nitrogênio. Já vi plantas com estresse hídrico definharem e chegarem mesmo em ponto de morte completa”. Mas o gene latente da Solda Manhã, que também está no Aliança 01, prossegue, conseguiu fazer as plantas venceram a crise hídrica de novembro, quando estavam em plena fase de crescimento, e apresentarem esses ótimos resultados, agora em março.
“Isso é resultado do melhoramento genético feito pelos agricultores, usando o que a natureza tem de melhor para a gente”, comemora o doutor em Produção Vegetal. Ao longo desses trinta anos, Arcanjo continuou acompanhando o trabalho dos agricultores, seja como secretário municipal, como consultor ou como cientista interessado na continuidade do sucesso da experiência. “Todo ano tem que fazer seleção das sementes”, conta.
A cada colheita, os agricultores sabem que precisam observar as lavouras mais produtivas e resistentes e, nelas, escolher as espigas mais bonitas e saudáveis: que não tenha sofrido ataque de doenças nem de insetos, as mais firmes, com as carreiras mais bem fechadas, com bom empalhamento, que “dobraram” quando secaram no pé, entre outras características.
“É um trabalho artesanal e altamente cientifico. O que é feito nos melhores centros de pesquisa do mundo, os agricultores fazem aqui em campo”, atesta.