O milho é o maior ícone no Brasil, nas Américas e, quiçá, no mundo. E o Espírito Santo tem um representante de respeito da versão crioula do cereal mais consumido no planeta: o Fortaleza. Com produtividade de até 9 toneladas/hectare, o milho Fortaleza começou a ser desenvolvido em 1993, em Muqui, mais precisamente na comunidade rural que lhe dá nome. Essa foi a primeira experiência de criação de uma semente crioula capixaba. De Fortaleza, ele ganhou os quatro cantos do estado, sendo o preferido dos camponeses e agroecologistas, quase uma unanimidade.
“Estão satisfeitíssimos!”, afirma Antonio Renato Bettero, vice-presidente da Associação de Produtores de Fortaleza e Adjacências (APFA), referindo-se a produtores de silagem (alimento para bovinos) de Presidente Kennedy, que há alguns anos trocaram o milho transgênico de mercado pelo crioulo Fortaleza.
Além do preço menor – em média R$ 6,00 a 7,00 o crioulo contra R$ 30,00 do transgênico – a produtividade e a durabilidade são maiores, e ainda se pode plantar a semente colhida, coisa impossível com as plantas híbridas e transgênicas, que são estéreis. “É um milho rústico, não estraga fácil, enquanto o híbrido já vem da roça estragado. É bom pra fubá e é puro, né”, descreve Renato.
A APFA foi uma entidade fundamental nessa experiência pioneira. As primeiras sementes de milho crioulo chegaram aos agricultores de Fortaleza pelas mãos do Grupo Kapixawa de Agroecologia, formado por estudante de Agronomia do campus de Alegre da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Melhoramento genético acessível
Uma delas foi a BR 105, que, depois de cerca de seis anos de pesquisa em campo, com melhoramento genético feito pelos próprios agricultores, com apoio de instituições públicas, foi batizada de Fortaleza. “Foi a que se adaptou melhor à nossa região”, relata Renato, citando também as variedades crioulas Aliança e Eldorado, que também tiveram boa aceitação entre os agricultores locais. “A semente crioula a gente mesmo consegue melhorar geneticamente. É só saber fazer”, encoraja.
A citada Aliança é outro bom exemplo desse aprimoramento genético descomplicado, acessível ao próprio agricultor, sem tecnologias caras, laboratórios ou royalties. É o que conta o agrônomo José Arcanjo Nunes, atual responsável pela Gerência de Agricultura Familiar da Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag).
Em 1992, Arcanjo foi um dos alunos do Kapixawa a desembarcar a BR 105 e outras crioulas em Muqui e, depois, no Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), trabalhou durante anos ao lado da APFA nas pesquisas em campo. “A Aliança foi criada por um agricultor, Valter Viana, do Assentamento 17 de abril, em Muqui”, homenageia o agrônomo.
Passados 25 anos, as sementes crioulas continuam sendo sua paixão e, segundo sua percepção, além do milho, feijão e arroz, há também produções isoladas de sementes de hortaliças para uso próprio dos agricultores, principalmente na região serrana – sendo o Assentamento Zumbi dos Palmares, em São Mateus, um bom exemplo. “No caso do feijão, há muita troca entre os agricultores. É possível avançarmos muito nessa área, e sinto que os agricultores desejam isso”, observa.
Guardiães
De fato, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) é prova desse interesse, pois é hoje um dos grandes difusores de sementes crioulas, inclusive do Fortaleza, entre os agricultores familiares do Espírito Santo.
“Não é na garrafinha, não é no laboratório, é na terra”, responde Douglas Fernandez, militante e técnico extensionista do MPA, diante da pergunta sobre como o Movimento tem feito a disseminação das sementes crioulas. “Na terra a gente tem certeza de que aquela semente vai ser cuidada, vai evoluir, vai ter um melhoramento genético”, explica, citando a inspiração cubana, essencial para o amadurecimento do trabalho dos camponeses brasileiros com as sementes genuínas. “Sempre que desenvolvem algum tipo de atividade, as famílias levam, de forma natural, suas sementes pra trocar, pra conhecer a história daquela semente”, conta Douglas.
O casal Carla de OIiveira Calaes Marim e Sergio Luiz Marim, ambos camponeses e reikianos, são um dos tantos casos de sucesso desse compartilhamento afetivo de sementes feito pelo Movimento. Trabalhando organicamente em sua propriedade no Córrego Santa Angélica, em Barra de São Francisco, desde 2003, receberam do MPA, nessa época, a primeira semente crioula, de milho. Depois vieram o feijão e o arroz, esse, de sequeiro, doado por familiares de Sergio que moram em Rondônia.
“A gente vira protetor daquela semente. É gratificante ter a sua própria semente, saber a origem. E a gente se sente na obrigação de cuidar do ciclo produtivo dela, preservá-la, colher armazenar”, conta Carla. “É uma coisa especial, é como se fosse um filho”, concorda Renato.
“A semente crioula é patrimônio dos povos, ela não tem um ou outro dono. A humanidade é dona das sementes crioulas e nós temos o direito de usá-las então ela é também uma contraposição, um símbolo de resistência contra a transgenia e uso de agrotóxicos”, discursa Douglas.
Na próxima sexta-feira (30), agricultores, camponeses, técnicos e pesquisadores de várias partes do país, participarão de um encontro no Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) em Santa Teresa. “Vai ser para mim um marco para as sementes crioulas do Espírito Santo. Vamos oficializar a criação da Rede Capixaba de Sementes Crioulas”, anuncia Arcanjo.