Tartarugas, golfinhos, peixes, caranguejos, aves, plânctons…impactos continuam graves e crônicos
Os impactos da lama de rejeitos de minério que vazaram da Barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, em Mariana/MG, a partir do dia 5 de novembro de 2015, continuam graves e crônicos sobre todos os ambientes naturais aquáticos monitorados pelos pesquisadores da Rede Rio Doce Mar (RRDM), formada por quase trinta universidades e instituição de ensino e pesquisa públicas brasileiras, incluindo a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
A triste confirmação é feita no segundo relatório anual do monitoramento, que compreende o período entre outubro de 2020 e setembro de 2021. A Nota Técnica sobre o relatório – nº 8/2022, emitida pela Câmara Técnica de Biodiversidade (CTBio), vinculada ao Comitê Interfederativo (CIF) e coordenada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – considerou ainda dados já apresentados no terceiro relatório anual e ressalta que, em todos esses ambientes aquáticos monitorados, as espécies afetadas incluem tanto as de tamanho micro (plânctons) como a chamada megafauna, formada por espécies de grande apelo popular, como tartarugas marinhas, golfinhos, caranguejos, peixes de alto valor comercial e aves marinhas.
O monitoramento é feito desde 2018 pela RRDM, por meio de um acordo de cooperação entre a Fundação Renova e a Fundação Espírito-Santense de Tecnologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Fest/Ufes), para a execução do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), cumprindo assim uma das cláusulas do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC) firmado pelas empresas criminosas com os governos federal e estaduais em março de 2016. Após os primeiros resultados dos estudos, comprovando os danos causados pela lama de rejeitos sobre a biodiversidade aquática, a Fundação Renova cancelou intempestivamente o contrato com a Fest. A medida gerou ampla mobilização dos cientistas e entidades, que judicializaram o caso, conseguindo sentenças judiciais favoráveis à continuidade do trabalho das universidades.
Os estudos são feitos ao longo de toda a calha capixaba do Rio Doce, bem como do litoral compreendido entre o Parque Nacional de Abrolhos, no sul da Bahia, e Guarapari, incluindo o estuário do Rio Doce, em Linhares, no norte. Entre os membros da equipe – mais de 500 acadêmicos – estão pesquisadores que já estudavam a região bem antes do crime, o que foi fundamental para comprovar os efeitos da lama.
Aves
Um ponto de destaque sobre as aves marinhas que nidificam na região monitorada é que elas “permanecem alimentando-se em áreas potencialmente contaminadas (…), o que pode ter um efeito ainda mais grave sobre as espécies (…), pois o uso continuado de uma área contaminada pode causar efeitos deletérios em médio prazo”.
Tartarugas marinhas e cetáceos
Situação similar foi observada para cetáceos (mamíferos marinhos, como golfinhos, botos, baleias e toninhas) e tartarugas marinhas, visto que “a área com maior densidade desses animais coincide com a região que recebeu o maior aporte de rejeitos relacionados com o desastre [a foz do Rio Doce, no litoral de Regência, em Linhares]”.
Especificamente sobre as três espécies de tartarugas marinhas avaliadas (verde, gigante e cabeçuda), “foi observada baixa variabilidade genética, tornando-as mais suscetíveis aos efeitos [da lama de rejeitos]”. Além disso, “foram detectados efeitos sobre a saúde, que, de acordo com o relatório, podem interferir ainda mais na capacidade de resiliência destes animais já ameaçados por outros fatores antrópicos [ameaças provocadas pelo ser humano]”.
O relatório afirma ainda que essas populações de tartarugas marinhas “sofreram impacto agudo pelo contato direto com o material oriundo da barragem logo após a sua chegada no ambiente marinho. E realçam que os efeitos crônicos, resultantes do contato contínuo dos animais com agentes químicos oriundos do rompimento da barragem, sobre a viabilidade populacional dos animais é um fator preocupante, ressaltando a importância da avaliação de saúde dos animais e do monitoramento da abundância e distribuição dessas populações ameaçadas a longo prazo para avaliar esses impactos”.
Peixes
Sobre os danos causados sobre os peixes, foi detectado uma “provável extirpação de espécies” da calha do Baixo Rio Doce, que hoje estariam restritas aos rios tributários ao curso principal, além de “um aumento da abundância e da biomassa de espécies introduzidas em locais mais impactados”.
O relatório e a nota técnica salientam ainda que, para remediar o problema, “as espécies de peixes de grande porte podem ser utilizadas como espécies-bandeira para projetos de proteção/recuperação ambiental”, especialmente as de alto valor comercial e importância cultural, com maior apelo popular, como o surubim-do-rio-doce, a crumatá e a piabanha.
Menor diversidade
As conclusões finais do documento reafirmam que os impactos do maior crime socioambiental do país e da mineração mundial, atualmente, evidenciam “seus efeitos mais crônicos, duradouros e de maior importância ecológica”. A gravidade é maior, sublinham, “especialmente quando são considerados os diferentes níveis tróficos [desde a vegetação e os plânctons até a megafauna] afetados e os danos causados ao patrimônio genético da biodiversidade aquática na área impactada”.
O contínuo monitoramento, sublinham, “tem sido capaz de registrar os impactos e suas tendências ao longo dos anos, constatando uma significativa alteração dos ambientes”. Alteração que começa na água e nos sedimentos (fundo dos rios, costa e mar) e afeta em seguida, também, toda as espécies vegetais e animais.
Como consequências, gerais, ocorre “menor diversidade de espécies e prevalência das [espécies] oportunistas, que possuem maior capacidade de adaptação [aos contaminantes da barragem de Fundão]”.
Além disso, “os níveis de toxidade da biota [espécies da fauna e flora] se mostram resistentes, atingindo agora o topo da cadeia alimentar, e com sazonalidade acentuada pelos períodos chuvosos ou forçantes oceanografias, que redisponibilizam os contaminantes depósitos no leito do rio ou no leito marinho”.
Audiência pública
Um dos autores da nota técnica do CTBio/CIF, o analista ambiental do ICMBio Joca Thomé, participou da audiência pública realizada na noite dessa terça-feira (12) pela Comissão de Proteção ao Meio Ambiente e aos Animais da Assembleia Legislativa, presidida pelo Rafael Favatto (Patri).
Em sua fala, Joca Thomé afirmou que o rompimento da Barragem da Samarco/Vale-BHP foi “o maior desastre ambiental do planeta” e “está sendo encoberto pela crise política e social do país”. Ressaltando a importância dos estudos prévios empreendidos pelos pesquisadores que compõem a Rede Rio Doce Mar (RRDM), o analista ambiental disse que os estudos mostram o que realmente está sendo extinto, pois é possível fazer a comparação do antes e do depois do rompimento.
A audiência teve objetivo de debater as condições em que se encontram os atingidos pelo crime no Espírito Santo e evidenciou problemas relativos ao cadastro dos pescadores, documentação, judicialização das demandas, demora nas pesquisas científicas para comprovar os danos causados, doenças novas na região e burocracia enfrentada pelos trabalhadores da pesca, atribuídos às dificuldades na relação com a Fundação Renova.
Robalo deformado
O presidente da Federação das Colônias e Associações de Pescadores e Aquicultores do Estado do Espírito Santo (Fecopes), Carlos Roberto Alves Beloni, falou sobre as condições de trabalho, de ações que atendam suas demandas, e de respostas às questões colocadas à Renova, que não enviou representante para a audiência pública.
Beloni relatou que a pescaria no Rio Doce não foi proibida, mas os peixes apresentam mutação. Durante sua fala, mostrou um robalo com visíveis deformações. O peixe foi pescado no dia 29 de junho último. O presidente da Fecopes perguntou por que razão não foi proibida a pesca no Rio Doce.
“Por que o Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis] não proibiu a pesca na calha do Rio Doce? Essa resposta o Ibama tem de dar à sociedade civil. O pescador não está recebendo o seu benefício, a Renova não cumpriu o TAC (Termo de Ajuste de Conduta), e as famílias têm que sair para o Rio Doce, pegar esse peixe e se alimentar”, afirmou Beloni.
O exemplar do robalo foi apresentado no plenário da Assembleia por quem fez a captura, o pescador Walkimar Bispo Rodrigues: “Não é o primeiro peixe que eu pesco nessa situação. Já peguei tainha magra. Quem conhece, quem pesca, sabe que tem coisa estranha nesse peixe. É a mesma situação de quem tem câncer. Fica magra. Eu voltei a pescar porque meu auxílio foi cortado. Eu tenho de pescar”, contou.
Relato similar foi feito por Milton, pescador de Linhares. “Tem peixe que quando é aberto, sai larvas da barriga. Pode ser do rio ou de lagoas, porque Linhares tem 69 lagoas. Naquelas em que a lama não chegou, colocaram uma barragem. Toda a pesca da cadeia produtiva, do sul e do norte, está comprometida”, afirmou.