Metereologista repercute estudo sobre influência de Terras Indígenas amazônicas no clima
Os monocultivos de eucalipto que se multiplicam no território capixaba, formando o que se convencionou denominar “desertos verdes”, dificultam a ação dos “rios voadores” vindos da Amazônia, reduzindo ainda mais a regularidade das chuvas no Espírito Santo, especialmente nas regiões norte e noroeste, que já vivenciam condições graves de escassez hídrica.
O alerta vem do meteorologista e pesquisador do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper) Ivaniel Fôro Maia, ao repercutir, para a realidade capixaba, dados apresentados na Nota Técnica “Manutenção das Terras Indígenas é fundamental para a segurança hídrica e alimentar em grande parte do Brasil”. O estudo foi produzido por um grupo de pesquisa em ecologia tropical do Instituto Serrapilheira, composto por pesquisadores de diversas áreas, vinculadas a importantes instituições brasileiras e internacionais e é endossado por alguns dos mais renomados cientistas do país, como o climatólogo Carlos Nobre, o físico Paulo Artaxo e a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, da Universidade de São Paulo (USP).
A Nota Técnica afirma que as 23 TIs estudadas contribuem com até um terço das chuvas que caem nas regiões norte, centro-oeste, sudeste e sul do Brasil, além de outros países fronteiriços, na América do Sul, por meio do fenômeno popularmente conhecido como “rios voadores”, em que a umidade produzida pela evapotranspiração da Floresta Amazônica é conduzida por correntes atmosféricas vindas do Oceano Atlântico, no sentido leste-oeste, até se deparar com a Cordilheira dos Andes, já próximo ao Oceano Pacífico, quando passam a se deslocar em outro sentido, descendo em direção ao sul do país e depois até o litoral das regiões sul e sudeste. Os autores concluem ainda que, se forem consideradas todas as áreas de floresta na Amazônia, o percentual de contribuição dos rios voadores para a pluviosidade de toda essa região será muito maior.
“As Terras Indígenas da Amazônia influenciam as chuvas que abastecem 80% da área das atividades agropecuárias no país. A agricultura e a pecuária estão entre as atividades que mais consomem água no Brasil, ou seja, a chuva é condição fundamental para o exercício dessas atividades. A renda econômica do setor agropecuário dos estados mais beneficiados por essa chuva totalizou, em 2021, R$338 bilhões – cerca de 57% da renda agropecuária nacional”, afirmam os cientistas.
Além disso, destaca a publicação, “a participação da agricultura familiar no valor da produção total supera os 50% em vários estados influenciados, ou seja: as chuvas provenientes dessas Terras Indígenas (TIs) contribuem diretamente para a segurança alimentar nacional, já que grande parte da produção desses pequenos produtores é destinada ao mercado interno”.
Em função desse cenário, o documento ressalta que o desmatamento e a degradação das florestas nas Terras Indígenas causam a redução dessas chuvas e, com isso, acarretam riscos graves à segurança hídrica, alimentar, energética e econômica do país. “A conservação dessas florestas é crucial não só para garantir a segurança hídrica e alimentar do país, mas também a cadeia produtiva do agronegócio e, portanto, a produção econômica de uma significativa parcela da economia nacional. Rondônia e Mato Grosso, por exemplo, figuram entre os nove estados mais influenciados por essa chuva, mas ao mesmo tempo estão entre os estados que mais desmataram florestas desde 1985”, diz a Nota Técnica.
Espírito Santo no limite da umidade
O Espírito Santo, segundo o estudo, está em uma faixa de menor influência das TIs, marcando um dos pontos que delimitam a região de influência amazônica sobre o clima e as chuvas. O fato de estar nessa área limite, acentua o meteorologista e pesquisador do Incaper, é mais um motivo para que o Estado invista efetivamente na proteção e mesmo na expansão das áreas de florestas nativas, especialmente na porção acima do Rio Doce, onde a presença das monoculturas, não apenas de eucalipto, mas também de pasto e café, são predominantes sobre os remanescentes de Mata Atlântica, reforçando ponderações feitas anteriormente pelo também meteorologista do Incaper Hugo Ramos.
Ivaniel explica que os rios voadores podem ser chamados de corredores de umidade ou zona de convergência de Atlântico Sul, e são fundamentais de fato para o clima de boa parte do país, pois sem a Amazônia, uma parte considerável do Brasil, incluindo o Espírito Santo seria um deserto, como ocorre em regiões da África, Ásia e Oceania que estão na mesma latitude. Mas, ressalta, “sem a contribuição da umidade local, da evapotranspiração que vem da Mata Atlântica, as nuvens vindas da Amazônia não conseguem se precipitar”.
Tem sido cada vez mais comum, diz, os rios voadores atravessarem todo o Espírito Santo, tornando o céu cinzento e o clima abafado, mas só formarem chuva no mar. “A umidade da floresta alimenta a nuvem e as gotas de umidade crescem e se precipitam, caindo no solo em forma de chuva. Quem fornece o vapor d´água de forma gratuita é a floresta. Sem a floresta, as nuvens passam. A gente observa no radar, que muito dessa umidade só se precipita no oceano”, explica.
Para reverter essa dinâmica e atrair com mais eficiência a umidade que atravessa o céu, é preciso plantar água, ou seja, reflorestar com mata nativa ou, pelo menos, Sistemas Agroflorestais (SAFs). “Umidade chama umidade. A floresta em pé tem um valor econômico e ambiental gigantesco. E quando eu falo de floresta, o meu conceito é de diversidade de espécies de fauna e flora. O eucalipto e o pinus não promovem o mesmo ambiente ecológico que pode ser comparado com a de uma floresta, com biodiversidade, com solo úmido, serrapilheira, evapotranspiração abundante”.
Ivaniel destaca políticas públicas como o Programa Reflorestar, do governo do Estado, como estratégias que precisam ser ampliadas. “Nós aqui temos como aumentar nossas áreas de floresta, permitindo que a água possa ser armazenada no solo, daí a importância dessas políticas públicas”, afirma.
“Tem espaço para todo mundo, existe esse mercado do monocultivo e existe também a necessidade de fomentar outras formas de uso do solo. O que tem ao lado dessas áreas de monocultivo? São outros monocultivos. É um solo muito pobre de umidade. Se você coloca um SAF consegue produzir de tudo um pouco, café, até eucalipto, mas também banana, pimenta-rosa, então existe espaço para todo mundo”, reforça.
Detalhando a comparação entre espécies exóticas plantadas em monocultivos com a Mata Atlântica, o pesquisador explica que “o eucalipto é uma planta que não tem a mesma dinâmica fisiológica de árvores nativas e, aqui [na região tropical], consome mais água do que consegue contribuir com evapotranspiração para a atmosfera”. Seu crescimento acelerado, diz, expõe esse problema. “É uma árvore que cresce muito rápido, leva cinco a sete anos para atingir o tamanho que uma árvore tropical levaria cerca de 20 anos ou mais. Retira do solo a umidade que poderia ser usada por um outro tipo de sistema e acaba afastando a umidade atmosférica também. Eu não vejo que essas áreas de monocultivos contribuam para a formação de chuvas”.
Outros prejuízos dos desertos verdes
Estudos científicos nacionais anteriores ao do Instituto Serrapilheira apontam diversos outros problemas ambientais provocados pelos monocultivos de eucaliptos. Um deles foi coordenado pelo professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Pedro Brancalion, e publicado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) em 2022.
“As plantações florestais de rápido crescimento podem consumir quase o mesmo volume de água que a chuva traz para algumas bacias nas fases de pico de crescimento. Portanto, se as plantações de eucalipto não forem bem planejadas, alguns dos problemas mais importantes apresentados pelas mudanças climáticas, que são as secas, poderão ser amplificados”, afirmou o cientista, na ocasião, ao comentar os resultados obtidos por um time de pesquisadores brasileiros e franceses que atuaram em um estudo sobre as vantagens de aumentar o número de espécies utilizadas nos plantios comerciais de árvores do Brasil e outros países, como França e Suécia. Os cientistas partem do pressuposto de que, quanto mais diversificado, mais resiliente é o ambiente em relação às mudanças climáticas.
“A maioria dos clones de eucalipto em uso hoje no Brasil é ótima para crescimento rápido, desde que haja disponibilidade de água suficiente. Em eventos de seca severa, cada vez mais frequentes com as mudanças do clima, os eucaliptos e outras espécies comerciais podem secar e morrer, bem como reduzir a oferta de água para as pessoas. Por isso é preciso buscar meios de tornar as plantações florestais mais resilientes à seca e econômicas no uso da água”, afirmou Brancalion, durante palestra no evento “Climate change and biodiversity scientific cooperation day”, realizado em 20 de outubro, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), pela Fapesp e os consulados gerais da França e da Alemanha em São Paulo.
No Espírito Santo, a área de monocultivos de eucalipto quase dobrou de tamanho em quatro décadas, segundo levantamento do MapBiomas, tendo experimentado um crescimento contínuo de 2004 a 2021, com apenas dois anos de exceção dessa dinâmica, entre 2012 e 2013, provavelmente em decorrência do lançamento do Novo Código Florestal.
Ao pretender introduzir meia dúzia de espécies aos monocultivos exóticos, o trabalho abre algumas janelas de discussão importantes. Um dos principais certamente é derrubar o mito que insiste em ser defendido pelas gigantes do setor de silvicultura – representado no Espírito Santo pela líder mundial desse mercado, Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose) – de que o eucalipto não é inimigo dos recursos hídricos e não seca o solo onde se instala.
Enquanto isso, na esfera administrativa, os sucessivos governos estaduais não se posicionam efetivamente em favor das comunidades nem da biodiversidade, dos recursos hídricos e do clima, e seguem licenciando os plantios de eucalipto, que se proliferam continuamente.
Já o reflorestamento de matas nativas caminha em passos muito mais lentos, mesmo sendo puxado pelo Programa Reflorestar, considerado referência em reflorestamento nativo no Brasil.
Conforme o Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, publicado em 2018 pelo governo do Estado, num período de oito anos, entre 2007 e 2015, o Espírito Santo teve 45 mil hectares de monocultivos de eucalipto, sendo o uso do solo que mais cresce no Estado.
Em um período próximo, de sete anos, entre 2013 e 2020, as matas nativas ganharam 10 mil hectares, sendo mais da metade delas formada por Sistemas Agroflorestais (SAFs). Uma comparação grosseira indica, portanto, o deserto crescendo mais de quatro vezes mais rápido que a Mata Atlântica no Espírito Santo.
Insustentabilidade econômica
A insustentabilidade econômica dos desertos verdes, por sua vez, foi enfatizada pelo diretor sênior de Programas da Conservação Internacional Brasil (CI Brasil), Miguel Moraes, ao anunciar a parceria firmada pelo escritório brasileiro da ONG com o governo do Estado para apoio ao Programa Reflorestar, feita em 2022, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27). “O retorno que o eucalipto tem hoje só foi possível porque lá atrás teve apoio significativo do governo federal no setor, além de uma série de pesquisas que foram feitas para baixar o risco dessa atividade. Foram 50 anos de investimento”, afirmou.
De fato, a eucaliptocultura é mantida, até hoje, com fartos incentivos fiscais. Somente o governo do Espírito Santo beneficiou a Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose) com R$ 600 milhões, conforme anúncio feito em junho passado, valor equivalente a mais do que o quádruplo do montante investido em transferência de renda em 2021, quando o orçamento para essa ação alcançou recorde, sendo oito vezes maior do que o de 2018. Com o dinheiro, a empresa afirmou que irá construir uma fábrica de papel tissue com geração de 200 empregos fixos, ou seja, ao custo de R$ 3 milhões cada vaga aberta.
A parceria anunciada lidava com uma ordem de grandeza de mil hectares de plantios por meio do Reflorestar, com possibilidade de crescimento. Considerando os 10 mil hectares de reflorestamentos feitos pelo programa na primeira década de implantação, os mil hectares representam uma cota relevante, principalmente quando se tem em vista que trata-se do maior programa de reflorestamento já empreendido por um ente público no país.
“Dez mil hectares é um número significativo. Poucas organizações chegaram nesse número. O BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] não chegou a esse número na Mata Atlântica. No Brasil, programa governamental de restauração em larga escala é o Reflorestar”, contextualiza Miguel Moraes.
Mas o número se mostra tímido quando comparado com o avanço dos monocultivos de eucalipto – desertos verdes – no Estado. Somente entre 2007 e 2015, segundo o Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, lançado em 2018, foram 45 mil hectares a mais de plantios no Estado. Essa dinâmica, desfavorável à floresta, se mantém há décadas e continua vigente, ainda sustentada pela inércia dos governos em investir em atividades mais sustentáveis.
“Uma coisa que a gente gostaria de ver é um programa de investimento que pudesse fazer, com a silvicultura de espécies nativas, o que foi feito com o eucalipto, porque estimularia essa economia de base florestal, com apoio a coletores de sementes e viveiristas e baixando o custo de insumos”, expõe o diretor da CI Brasil, citando a Rede de Sementes do Xingu, construída com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), como um norte a ser buscado.