Quilombolas se unem a outros povos da floresta em encontro nacional da Rede Alerta Contra o Deserto Verde
Apesar das principais definições de floresta em uso hoje no mundo desconsiderarem critérios como biodiversidade e aplicação intensiva de agrotóxicos, povos tradicionais como quilombolas e indígenas sabem bem a diferença entre uma floresta nativa e um monocultivo de árvores.
“Plantação de um tipo só de árvore não é floresta. Floresta é mata nativa, é diversidade de plantas, de animais, tem frutas para os animais comerem, e não uma arvore só”, afirma Domingos Firmiano dos Santos, o Chapoca, liderança capixaba na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e na Comissão Quilombola Sapê do Norte.
A posição quilombola reflete uma petição internacional coordenada há uma década pelo Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, na sigla em inglês) e direcionada à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), mas ainda não atendida.
O órgão da ONU considera floresta como “terras que se estendem por mais de o,5 hectares dotadas de altura superior a 5m e uma cobertura de copa superior a 10 por cento, ou de árvores capazes de atingir essa altura in situ”. A definição simplória tem permitido a concessão de diversos incentivos governamentais para a expansão de monocultivos como os de eucalipto que devastam o norte do Espírito Santo, encurralando a Mata Atlântica, fragilizando os recursos hídricos e inviabilizando a titulação dos territórios quilombolas.
“Seca os córregos, afugenta os animais, traz insetos que vivem em monocultivo. Traz só a degradação do meio ambiente e faz as comunidades ficarem cada vez mais empobrecidas. Não tem nem água para a subsistência”, descreve Chapoca.
Os impactos socioambientais negativos da eucalptocultura e as estratégias para superar esse modelo arcaico de desenvolvimento foram o tema central do Encontro Nacional da Rede Alerta contra o Deserto Verde desde ano, realizado na Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, no município de Prado, Extremo Sul da Bahia, entre os dias 16 a 19 de setembro.
O encontro reuniu comunidades indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu e camponesas, ativistas, pesquisadores, advogados populares, assentados e acampados em luta pela reforma agrária, lideranças de sindicatos, organizações e movimentos sociais, oriundos de diversos estados brasileiros e também de outros países impactados pelos monocultivos, como Espírito Santo, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, além de Argentina e Uruguai.
Da parte das comunidades do território quilombola tradicional do Sapê do Norte, localizado em São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Estado, o foco é a titulação do território, já certificado pela Fundação Cultural Palmares. “Fortalecer as comunidades para adquirir nosso espaço territorial. O Estado precisa demarcar essas áreas que historicamente nós somos donos. Precisamos defender nossa cultura, nossa religião, o meio ambiente. Como está hoje, destruíram tudo. Regaçaram com a Mata Atlântica pra plantar essas arvores, que estão destruindo o meio ambiente”, invoca Chapoca, ressaltando uma nova ameaça, já instalada no sul da Bahia, que são as variedades transgênicas de eucalipto. “Vai destruir muito mais o meio ambiente. O governo vai ter que barrar isso, não pode permitir”, clama o líder quilombola.
Ao final do encontro, foi redigida uma carta com demandas de luta coletiva. “Queremos fortalecer essa rede para discutir e encaminhar as coisas em conjunto”.
Povos da floresta reunidos
A carta traz um apanhado dos recentes episódios mais emblemáticos das “medidas agudas de expulsão das famílias que reivindicam seus territórios em áreas sobrepostas pelos monocultivos de eucalipto e pelo agronegócio”, citando os últimos “atentados às vidas das comunidades”, como o “assassinato do indígena Pataxó Sarã (“raiz” na língua nativa Pataxó) de 14 anos, na Terra Indígena Comexatibá (Prado/BA); o incêndio criminoso no Ponto de Memória Mesa de Santa Bárbara da Comunidade Quilombola do Linharinho (Conceição da Barra/ES); e a prisão política do Professor, Poeta e Produtor Cultural Flávio Prates após ação de despejo ocorrida na área do Acampamento Nova Trancoso (Trancoso/BA)”.
O documento ressalta também que “atreladas às ações capitalistas empresariais, estão diferentes esferas do Estado”. Esta “aliança do setor dos monocultivos de árvores com o Estado brasileiro”, sublinha, “tem raízes na ditadura militar e segue até os dias de hoje”.
Nesse contexto, são elencadas medidas necessárias a serem empreendidas pela sociedade e principalmente pelo poder público. Entre elas: a titulação coletiva dos territórios quilombolas e indígenas, com efetiva garantia da soberania destes povos sobre seus territórios; a implantação de novas terras para uma reforma agrária com princípios agroecológicos; a não liberação de novas árvores transgênicas, e o não plantio das árvores transgênicas já liberadas pela CTNBio; que a CTNBio se atenha a observação do princípio da precaução e da avaliação criteriosa e científica na liberação de transgênicos, escandalosamente não observados em suas liberações, e rotineiramente documentados, como no caso do eucalipto transgênico H421; a não aprovação do Projeto de Lei 1.366/22 que está tramitando na Câmara dos Deputados e visa retirar a silvicultura da lista de atividades “potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais”, retirando a necessidade de licenciamento ambiental; a maior tributação, regulação, e rigor nos processos de licenciamento ambiental e fiscalização dos monocultivos e das indústrias de celulose; a proibição da pulverização aérea de agrotóxicos; a garantia da segurança e integridade física das comunidades indígenas, quilombolas e campesinas.
Em síntese, conclui a carta: “que se defenda a vida do povo e não os interesses das empresas”.