MPF aciona Justiça para suspender reintegração de posse e 4ª Vara ouve indígenas sobre revisão do acordo com a Renova
“A presente causa não pode ser analisada tão somente pelo ponto de vista civilista de posse privada, tratando-se de verdadeira disputa sobre Direito Indígena (“disputa sobre direitos indígenas” – art. 109, XI da Constituição), necessitando ser examinada considerando as especificidades e o caráter multifatorial do caso. Trata-se de mais um momento de crise, do estopim de um processo longo e contínuo de violação de direitos dos povos originários localizados no Espírito Santo”.
A afirmação consta no Agravo de Instrumento com Pedido de Efeito Suspensivo (número: 5004026-78.2023.4.02.5004), impetrado no Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF-2), em que o procurador da República em Linhares, Jorge Munhós, recorre da sentença de reintegração de posse concedida pela 1ª Vara Federal, também de Linhares, em favor da Vale e contra a ocupação dos trilhos realizada pelas comunidades indígenas Tupinikim e Guarani de Aracruz, no norte do Estado, decorrente das violações do crime Samarco/Vale-BHP.
Na peça, o procurador pede que a ordem de desocupação – marcada pela Polícia Federal para o dia 9 de outubro – seja suspensa até a realização de “inspeções judiciais e audiências de mediação (…) com acionamento da Comissão de Conflitos Fundiários do TRF2”, em cumprimento à Resolução Nº TRF2-RSP-2023/00024, e com base na Resolução 454/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que “incentiva o aprofundamento do diálogo interétnico e intercultural, com respeito à forma de organização social e das formas próprias dos povos indígenas para resolução de conflitos”.
Pede também a suspensão do inquérito policial instaurado contra algumas lideranças e caciques das aldeias que integram a ocupação. “Os caciques e lideranças não têm poder de desmobilizar um ato de protesto que organicamente surgiu nas aldeias e que conta com centenas de aderentes. Eles atuam mitigando danos e controlando situações de desordem que poderiam ser ainda mais graves e trabalham para criar as condições para a desobstrução da linha férrea. Havendo decisão de assembleia territorial no sentido de que a desobstrução pressuporia a abertura de um processo de negociação, foge totalmente ao poder dos caciques fazer cumprir a decisão”, explica o procurador. Compreender essa peculiaridade, reforça, é respeitar seus usos e costumes, na forma da Resolução 454/2022 do CNJ.
O procurador enfatiza que “o Ministério Público Federal não compactua com atos antijurídicos e está comprometido com a resolução célere do conflito de interesses e a desobstrução do terminal ferroviário”, porém, “o único caminho para a superação da situação de crise é o aprofundamento do diálogo, com escuta ativa dos povos originários”.
Diálogos que já vêm ocorrendo, informa, entre as comunidades, o MPF, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Juízo da 4ª Vara Federal de Belo Horizonte, responsável pelo julgamento das ações relativas ao crime da Samarco/Vale-BHP. Nas reuniões presenciais já realizadas, afirma o procurador, ficou nítido “o sentimento de que é viável uma solução pacífica para o presente caso”.
As próximas estão marcadas para esta quinta e sexta-feira (28 e 29), de forma remota, com o juiz da vara mineira, Vinicius Cobucci, com apoio de uma equipe de antropólogos da Funai e do MPF enviada para estarem em campo junto com os povos originários nesses dois dias.
Crime Samarco/Vale-BHP
Sobre o “processo longo e contínuo de violação de direitos das comunidades”, Jorge Munhós destaca “morosidade” com que as mineradoras responsáveis pelo crime ambiental contra o Rio Doce atuaram no último ano. Em novembro passado, as comunidades decidiram suspender a ocupação dos trilhos feita durante 43 dias, mediante o compromisso assumido pelas empresas criminosas de reverem o acordo de compensação e reparação dos danos imposto um ano antes pela Fundação Renova, sem cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na ocasião, o juízo da 1ª Vara Federal de Linhares declinou de atuar no processo, o que anulou a reintegração de posse que havia sido emitida em favor da Vale, passando o caso então para a alçada da 4ª Vara Federal de Belo Horizonte, que liderou audiência e reuniões entre as aldeias e as empresas, com objetivo de chegar a um novo acordo de reparação e compensação dos danos.
“As empresas mineradoras, através de seus representantes, em reunião realizada no dia 11 de setembro [de 2023], demonstraram não querer resolver a lide em questão [a continuidade das reuniões para revisão do acordo com a Renova]. Inclusive, após questionamentos das lideranças indígenas, as empresas mineradoras verbalizaram ‘vida que segue’. Em resumo, as violações e o desrespeito contínuo foi o que levou as comunidades indígenas a se manifestarem, se mobilizando na ação reivindicando a garantia dos direitos que estão sendo violados continuamente”, narra o procurador.
Pendências das empresas
À morosidade do último ano, o cacique Vilmar (Tupã Atã) acrescenta mais de uma década de pendências da Vale quanto a condicionantes estabelecidas no Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI) referente à concessão da linha férrea que corta a Terra Indígena (TI) Comboios. “São treze anos com pendências sobre a concessão da ferrovia”, afirma, citando ações de cunho social e ambiental que já deveriam ter sido realizadas junto às aldeias afetadas pela ferrovia.
Há ainda por parte de outras empresas, incluindo algumas que reclamam dos prejuízos advindos da paralisação da ferrovia pelas comunidades. Entre elas, a Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), que não cumpriu condicionantes do licenciamento ambiental do Canal Caboclo Bernardo, construído na década de 1990, conforme informou o Cacique Toninho, de Comboios, em fevereiro, quando da primeira reunião intermediada pela 4ª Vara entre as empresas e as comunidades, após a suspensão da ocupação dos trilhos no final do ano passado.
Marco Temporal
Toda essa “disputa sobre Direito Indígena” que transcorre na linha férrea que corta os territórios Tupinikim e Guarani do Espírito Santo, ocorrem num momento de grande efervescência nacional em torno do Marco Temporal. A tese foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) há uma semana, por 9 votos a 2, e a Corte agora segue analisando alguns aspectos levantados por alguns ministros, como Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, referente a indenizações de posseiros e outras questões.
Já no Senado, o PL 2903/2023, que intenta legalizar o Marco Temporal, foi aprovado em votação atropelada na Comissão de Constituição e Justiça e no plenário nessa quarta-feira (27), seguindo para sanção presidencial.
A decisão dos senadores, atendendo à pressão da bancada ruralista, é apenas um contratempo político que tende a ser solucionado pelo presidente Lula, visto que não é possível aprovar uma lei que já é previamente declarada inconstitucional pelo STF, conforme avaliou o Observatório do Clima (OC), rede da sociedade civil brasileira sobre agenda climática, formada por mais de 90 organizações e que desde 2013 publica o SEEG, a estimativa anual das emissões de gases de efeito estufa do Brasil.
“O único destino possível do desatino aprovado pelos senadores é o veto integral pelo Presidente da República. Somente assim Lula poderá cumprir a Constituição e as promessas que fez ao ser eleito de resgatar a dívida histórica do Brasil com os povos indígenas e priorizar o combate ao desmatamento e à crise do clima”, pontou o OC.