Recursos questionam nulidades em acórdão e indicam prejuízos com condições de adesão ao Novel
Em decisão proferida na 1ª instância, foi instituído o Sistema Indenizatório Simplificado (Novo Sistema Indenizatório – Novel) para os municípios onde foram reconhecidos danos materiais e morais experimentados por pessoas que ficaram impossibilitadas de exercer determinadas atividades produtivas e econômicas, a exemplo dos pescadores artesanais e de subsistência. Foram fixadas indenizações que devem ser pagas àquelas pessoas interessadas em aderir ao Novel, desde que aceitem determinadas condições restritivas de direitos, consistentes na assinatura de termo de quitação geral e na renúncia de ações indenizatórias ajuizadas em países estrangeiros. A contratação de advogado tornou-se obrigatória para aderir ao Novel, podendo a Fundação Renova descontar honorários do montante indenizatório devido aos atingidos aderentes.
No acórdão recorrido pelo MPF, o TRF1 classificou o direito à indenização pelos danos socioeconômicos incluídos no Novel como individual homogêneo, patrimonial e disponível, e, por tal motivo, negou a participação do Ministério Público no feito. Também compreendeu pela regularidade do segredo de justiça determinado em 1ª instância, o qual, de acordo com o MPF, resultou em violação aos arts. 5º, LX e 93, IX, da Constituição Federal, uma vez que não foi demonstrada a existência de alguma das situações admitidas pelo ordenamento jurídico para excepcionar a publicidade dos atos processuais.
Além disso, foram mantidas as condições restritivas de direito, que de acordo com o MPF, são nulas e proporcionam prejuízos às pessoas atingidas que aderiram ao Novel, inseridas em situação de vulnerabilidade. Negou-se, por consequência, o pedido formulado pelo MPF, para que as indenizações pagas sejam classificadas como “adiantamento de indenização”, afastando-se a quitação geral.
Contra tal acórdão, o MPF questiona por meio de recursos extraordinário e especial para que o caso seja levado, respectivamente, ao STF e STJ, e reconhecidas as nulidades do julgamento, especialmente em razão dos prejuízos causados pelas condições de adesão que restringem direitos dos atingidos. Por meio de embargos de declaração, o MPF visa também reformar a decisão do tribunal.
Para o órgão ministerial, está presente nos autos a repercussão geral de questão constitucional, no caso, a definição da obrigatoriedade ou não de intervenção do MPF em processo que diz respeito ao maior desastre socioambiental e socioeconômico da história do Brasil: o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015.
“A natureza individual disponível do direito à indenização não se sustenta por tratar-se de processo de liquidação de danos a partir de acordos firmados pelo MPF, em que é não apenas necessária, mas compulsória, a intimação do órgão para acompanhar todos os atos do processo. Ainda, em razão de haver jurisprudência do STF no sentido de que o interesse social decorrente da controvérsia coletiva é suficiente para ensejar a legitimidade do Ministério Público (RE 631.111)”, aponta o MPF.
A falta de intimação do MPF, como aponta o recurso, impediu a adequada defesa da ordem jurídica, “sendo causa de diversas outras violações como ofensa aos princípios da legalidade, contraditório e cooperação entre os sujeitos, sendo suficientes para reconhecer a nulidade dos atos processuais”.
O MPF também destaca a ausência de comprovação, nos autos do processo, do alegado risco à segurança dos integrantes da autodenominada “Comissão de Atingidos de Baixo Guandu”, capaz de justificar a decretação de sigilo processual, de modo a contrariar o ordenamento jurídico, que tem como regra a publicidade dos atos processuais.
Segundo o procurador regional da República Felício Pontes Jr, “o efeito prático do sigilo foi impedir que a conduta da ‘Comissão de Atingidos’ fosse conhecida e fiscalizada justamente por aquelas pessoas que ela pretende representar. Vale dizer, os integrantes da ‘Comissão’ pretendem falar em nome de uma determinada coletividade, mas o querem fazer de modo secreto, sem que essas pessoas possam conhecer aquilo que se faz, supostamente, em seu nome”.
Reparação de danos
Sob tal perspectiva, a matriz indenizatória definiu valores qualificados como médios, no entanto, sem parâmetros exatos e, cuja adesão, entretanto, importa em quitação integral e definitiva para todos os danos materiais e morais sofridos pelos atingidos.
“Não há como se obter justiça e pacificação social a partir de processo judicial que, a despeito de sua complexidade, desconsidera o ordenamento jurídico e se configura como um fim em si mesmo, nutrido unicamente pela busca de um ideal de celeridade e economicidade processual a qualquer custo, a despeito da efetividade do direito material tutelado”, narra a petição.
Em seu recurso, o MPF destaca nulidade de uma das condições de adesão impostas àquelas pessoas interessadas em aderir ao Novel, que foi mantida no acórdão do TRF1. Trata-se da obrigação da assinatura de termo de quitação definitivo relativo a todos os danos relacionados ao desastre, mesmo que não tutelados no processo – com exceção dos danos futuros.
O MPF afirma que a decisão de 1ª instância, que fixou o Novel, não é homologatória de acordo, tendo o juiz destacado que as partes não lograram êxito na solução consensual do conflito, mesmo após sucessivas rodadas de negociação. Assim, ressaltou o equívoco de premissa que norteou o acórdão do TRF1, no sentido de que a exigência do termo de quitação seria razoável no contexto de concessões recíprocas tomadas em acordo.
Além disso, o órgão ministerial reitera a aleatoriedade dos valores indenizatórios definidos como contrapartida à assinatura do termo de quitação definitivo, expressamente qualificados como médios, embora não se saiba médios do quê.
Outra condição de adesão restritiva de direitos dos atingidos, mantida pelo acórdão do TRF1 e impugnada pelo MPF, consiste na exigência de pretensões indenizatórias veiculadas em ações judiciais com tramitação em países estrangeiros. Isso porque, tal exigência seria manifestamente contrária ao ordenamento jurídico brasileiro e prejudicial às pessoas atingidas que aderiram ao Novel.
Segundo o MPF, não há amparo legal para a exigência de advogado para tratar de procedimento extrajudicial. “A abusividade de tal exigência é flagrante, representando verdadeiro óbice à autonomia privada do atingido e ao princípio da eficiência (artigo 8º do CPC)”.
O acórdão do TRF1, no entanto, deu provimento ao recurso para reformar a decisão de 1ª instância na parte em que autoriza que a Fundação Renova desconte os valores de honorários advocatícios do montante indenizatório devido às pessoas atingidas que aderiram ao Novel. Foi determinado que a Fundação Renova internalize as despesas com os honorários advocatícios. “Inclusive, o juiz de 1ª instância já ordenou que a Fundação Renova realize o pagamento de tais quantias para atingidos que aderiram ao Novel em todos os territórios impactados, que correspondem a mais de R$ 696 milhões”, informa o MPF.
No recurso foi mencionado ainda que, em decisão de junho deste ano, o presidente do TRF1, nos autos da suspensão de liminar nº 1016957-59.2021.4.01.0000, afastou as condições de adesão restritivas de direito impostas aos atingidos que aderiram ao Novel no município de Naque (MG), acolhendo os argumentos apresentados pelo MPF para indicar sua nulidade.
‘Comissão de Atingidos’
No recurso direcionado ao STJ, o MPF questiona a legitimidade da “Comissão de Atingidos” para atuar como substituto processual de todas as pessoas atingidas de Baixo Guandu. Ressalta que a “Comissão de Atingidos” não se confunde com uma associação, e que o TAC/GOV, que é um dos acordos homologados juntamente às mineradoras, não é instrumento adequado para atribuir legitimidade processual a quem quer que seja, conforme compreendido no acórdão do TRF1, que manteve entendimento de 1ª instância.
O MPF também discute a representatividade processual da “Comissão de Atingidos de Baixo Guandu”, cuja criação e funcionamento deveria ter acompanhamento técnico por parte do Fundo Brasil de Direitos Humanos (FBDH), cabendo ainda cumprir diversos deveres exigidos pelo TAC/GOV. Dentre esses deveres, ressalta-se a exigência de ampla e prévia divulgação de todas as reuniões realizadas, as quais devem ser abertas à participação de qualquer pessoa atingida interessada; a necessidade das comissões serem orientadas por regulamento próprio; entre outros pontos, instrumentos que visam garantir a autonomia do grupo e evitar que seja capturado por indivíduos que pretendem falar por todos os atingidos.
Sobre isso, Felício Pontes Jr manifesta que “ao chancelar que essas salvaguardas fossem violadas, o acórdão em estudo contribuiu para o resultado verificado, qual seja, a formação de comissões compostas por poucas pessoas, que deliberam secretamente, sem que haja garantias institucionais e procedimentais de accountability diante dos atingidos”.