Carta será elaborada em encontro no Sapê do Norte. Lei que criminaliza ocupações é um dos temas
A principal atividade do mês das mulheres quilombolas do norte do Espírito Santo, neste ano, será realizada na comunidade de São Domingos, em Conceição da Barra, uma das mais de trinta que integram o Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que abrange também o município de São Mateus.
O encontro ocorre neste sábado (16) e é organizado pelo coletivo de Mulheres Quilombolas do Sapê do Norte. O objetivo é promover o “fortalecimento da nossa luta em prol de políticas públicas e direitos sociais para as nossas comunidades”, afirmam as organizadoras em suas redes sociais. O lema: “Mulher Quilombola – sinônimo de resistência!”.
O encontro terá a presença de autoridades convidadas e parceiros da luta das mulheres quilombolas, em uma programação cultural e espiritual, que acolha as mulheres e seus filhos, além de exposição e venda de produtos. “É importante pensar nas mulheres mães. Vamos ter ciranda, espaço cultural, místicas e espaço para demonstração e exposição de produtos das mulheres agricultoras, artesãs, extrativistas, professoras e mães”, descreve Flávia dos Santos, integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte e da equipe da organização do encontro.
“Vamos escrever uma carta aberta política, que vai ser protocolada nos governos do Estado e Federal. Escrita, mas feita pela voz das mulheres quilombolas, colocando as evidências de violações de direitos dentro do nosso território. Diversas violações que denunciamos durante todo o ano. Mais uma vez vamos colocar em evidência, para que sejam tomadas as providências necessárias”, explica.
Ocupações
Um ponto específico de pauta é a Lei nº 166/2024, aprovada recentemente na Assembleia Legislativa, que impõe uma série de restrições de acesso a políticas públicas estaduais e federais a pessoas que sejam consideradas “invasoras” de imóveis urbanos ou rurais. Flávia explica que, conforme aprovada, a lei criminaliza as ocupações de terras legítimas feitas pelas comunidades quilombolas, que no Sapê recebem o nome de “retomadas”.
“A gente entende que faz ocupação de uma terra que é nossa de direito. Pessoas como nós, que já somos vulneráveis e não temos acesso a quase nenhum direito, com essa lei, somos ainda mais criminalizados. Ela tira nosso direito de acessar qualquer tipo de política pública, até de emprego, de concursos. A maioria das mulheres quilombolas são professoras, recebem bolsa-família, são bolsistas universitárias. E essa lei fala que a partir do momento que você participa de uma ocupação, não tem direito a acessar nenhum tipo de políticas públicas”, argumenta.
Processo histórico
A Lei 166/2024 é mais uma forma de criminalização e violação de direitos das comunidades quilombolas, explica Flávia. Violações que são históricas, resultado da postura violenta da Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose) desde a década de 1970, quando ela se instalou na região com o nome de Aracruz Celulose, e iniciou uma ofensiva contra as comunidades, que reivindicam a titulação definitiva de seu território e o recuo dos monocultivos de eucalipto que a empresa insiste em fazer avançar continuamente, destruindo corpos d’água e a biodiversidade e sufocando a vida da população.
Ofensiva que se dá, inclusive, por meio de processos de grilagem, conforme denunciou o Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública impetrada em 2013 e que já obteve uma primeira decisão favorável, em outubro de 2021, bem como também movimentos sociais do campo.
A violência do capital se soma à negligência do Estado, denunciam continuamente as comunidades. Seja o Governo Federal, que ainda não concluiu o processo de titulação, parado há mais de uma década no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), seja do Governo do Estado, que se nega a levar políticas públicas básicas ao território e não repreende as ações violentas das empresas de vigilância, ao contrário, muitas vezes utiliza o aparato policial para reforçar as violências.
“Nós, mulheres quilombolas, estamos nesse território que nos pertence, que nos alimenta e sustenta nossas famílias, mas sofremos violações ao direito de fazer nosso extrativismo, do nosso direito de ir e vir dentro do território, com estradas que são fechadas pela empresa [Suzano] e com as ameaças, abordagens violentas e perseguições por parte da vigilância [empresas contratadas pela Suzano]. Também sofremos violações pela falta de políticas públicas do Estado nas comunidades, de acesso à energia e internet e à educação escolar quilombola. São muitas violações, que vão ser relatadas pelas vozes das mulheres nesse dia, nessa carta”, elenca.
Contexto político e legal
Conforme registra o Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 90% das famílias quilombolas que habitavam o Sapê do Norte antes da chegada da então Aracruz Celulose foram expulsas devida à truculência da empresa em se apropriar das terras. Os que resistiram foram sendo ilhados pelo deserto verde de eucaliptos e continuaram a sofrer com a violência do capital. tudo isso em conluio com os sucessivos governos estaduais e privados, como consta no estudo “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, que reuniu 55 pesquisadores, sob a condução da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
A pesquisa foi divulgada pela Agência Pública em em julho passado, como parte da série especial “Empresas cúmplices da ditadura” e também em Século Diário, na ocasião.
A partir de 2003, com a publicação do Decreto 4.887/2003, que regulamenta a titulação de territórios quilombolas no país, as comunidades do Sapê do Norte e de outras regiões do Estado iniciaram seus processos, recebendo certificação da Fundação Cultural Palmares e dando entrada no Incra. Porém, em 2012, o então Partido da Frente Liberal (PFL) impetrou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra o decreto, o que paralisou sua implementação e, consequentemente, os processos de titulação em curso. Foi somente em 2018 que o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Adin, declarando a constitucionalidade do decreto.
A gestão de extrema direita que o Brasil enfrentava na época, no entanto, impediu que essa vitória legal se concretizasse em retomada dos processos, visto que o presidente então eleito, Jair Bolsonaro (PL), utilizou como uma de suas promessas de campanha, que não regularizaria nenhum centímetro de terra para quilombolas nem indígenas. Somente com a eleição de Lula (PT) e sua posse há pouco mais de um ano, os processos voltaram a andar.