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‘Não basta a bomba funcionar. É preciso uma reengenharia do ciclo da água’

Ricardo Franci defende prioridade para o tripé “reuso, controle de perdas e renaturalização dos rios”

Arquivo Pessoal

Um dos estados brasileiros mais vulneráveis à crise climática, o Espírito Santo precisa começar a planejar e realizar medidas efetivas de convivência com os eventos extremos, principalmente chuvas intensas e secas severas. O alerta, que vem sendo reafirmado com mais veemência há cerca de uma década por diversos pesquisadores, dentro e fora da academia, tomam uma dimensão de urgência indiscutível neste ano de 2024, em que o País se comove com a tragédia do Rio Grande do Sul, que já contabiliza 163 mortos, apenas um mês após os municípios do extremo sul do Espírito Santo atravessarem também uma enchente história, que deixou 19 mortos.

Para o engenheiro civil e sanitarista Ricardo Franci, doutor em Engenharia do Tratamento de Águas na França e professor titular do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a maneira mais segura e inteligente de adaptar as cidades, especialmente as litorâneas, à crise climática, é fazê-las “respeitar os ciclos da natureza”.

O da água, explica, é um dos três principais ciclos necessários ao desenvolvimento humano, ao lado do ciclo dos nutrientes e do ciclo da energia. “Eles são imbricados, indissociáveis. Se você precisa de mais alimentos para abastecer uma cidade, mais nutrientes, tem que plantar mais, então precisa de mais água e mais energia”, exemplifica.

“Só que as nossas cidades não são pensadas dessa forma. A gente constrói e não considera que os ciclos artificiais que a gente cria são subciclos da natureza, acha que são coisas independentes. E a natureza vem e apresenta a fatura, que é o que está acontecendo agora”.

Previsões e tendências

As previsões das principais entidades internacionais, como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e a Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, apontam para o aumento dos eventos extremos em todo o planeta.

No Espírito Santo, sublinha Ricardo Franci, a previsão é de que, em relação às chuvas, as médias anuais irão se manter, porém, distribuídas de forma mais concentrada, com períodos de secas mais severas e também com episódios de chuvas torrenciais e consequentes alagamentos e inundações. Isso nas regiões metropolitana e sul. Já no norte, as médias anuais devem diminuir. “A tendência é o semiárido, hoje na região norte, adentrar ao centro do Estado. Vamos ter cada vez mais escassez de água no norte. Já na região metropolitana e sul, a média vai permanecer, mas o desvio padrão da pluviosidade vai aumentar”.

Ele cita um mapeamento interativo criado pela ONG Climate Central, dos Estados Unidos, que aponta as áreas do planeta que possivelmente serão tomadas pelas águas à medida que o mar se eleva, com o aquecimento do planeta. A reportagem, publicada no site Tempo nessa terça-feira (21), explica que o mapa mostra o impacto do aquecimento de 3ºC na temperatura média da Terra.

O texto lembra que a Nasa, a agência espacial americana, mediu um aumento de 9,4 cm do nível do mar no planeta entre 1993 e 2023, com um aumento médio de 0,3 cm ao ano nesse período e de 0,42 cm/ano na última década. “Se hoje as emissões de carbono fossem reduzidas até ao limite proposto pelo Acordo Climático de Paris, e o aquecimento fosse mantido a 1,5°C, ainda assim haveria um aumento médio global no nível do mar de 2,9 metros ao longo de vários séculos”, alerta o site.

No Espírito Santo, o mapa mostra bairros inteiros da Capital capixaba submersos, como Jardim Camburi e Jardim da Penha, além de parte ainda mais significativa do município de Vila Velha.

Em vermelho, áreas que devem ser tomadas pelas águas em Vitória e Vila Velha à medida que o mar se eleva com o aquecimento global. Foto: Reprodução

O tripé da reengenharia

As “cidades do futuro”, salienta o professor da Ufes e doutor em Saneamento, precisam ter um olhar cuidadoso para os ciclos da água. “Não basta ‘a bomba funcionar’. É uma questão muito mais complexa. Precisamos educar a população para um momento genuinamente diferente, que a gente ainda não viveu. O nosso modus vivendi não vai ser mais como foi até agora. Na minha área [engenharia ambiental], a gente fala de ‘reengenharia do ciclo urbano da água’, que é um subciclo da água na natureza”.

Reengenharia que é formada por um tripé: “reuso, controle de perdas e renaturalização dos rios”. Isso nas cidades. Mas há que se pensar em todo o trajeto das águas para um trabalho realmente eficaz. “O gerenciamento de toda a bacia hidrográfica, principalmente com combate ao desmatamento, proteger das nascentes e matas ciliares”. E complementarmente, educação ambiental para toda a população.

Nesse sentido, Ricardo Franci cita dois conceitos que têm ganhado mais espaço no mundo: o chinês “cidades-esponjas” e o australiano “cidades sensíveis à água”. Ambos expõem a necessidade de aumentar a permeabilidade do solo nas cidades, com mais áreas verdes, preferencialmente, mas também com obras de engenharia que imitem a natureza no aspecto da absorção da água, evitando sua acumulação na superfície e escoamento acelerado para áreas mais baixas.

Em artigo de Julia Braun publicado na última terça-feira (21) na BBC Brasil, o criador do conceito de cidades-esponja, o arquiteto chinês Kongjian Yu, abordou a necessidade de criar “parques adaptados e áreas cultiváveis capazes de absorver mais água” e afirmou que “lagoas e pântanos podem coexistir com rodovias e arranha-céus”. A chave do sucesso da estratégia, ressaltou, é parar de lutar contra a água e investir em soluções duradouras e baseadas na natureza.” Temos uma escolha a fazer: investir em grandes barragens e diques que estão fadados a fracassar ou apostar em algo que é duradouro, sustentável e ainda bonito e produtivo”.

Reuso

Sobre o reuso da água, Ricardo Franci lamenta que o Espírito Santo ainda não tenha uma legislação específica. “O Brasil não tem, mas alguns estados já possuem. Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul. “O Estado que tem uma penúria de água na região norte, mas não considera o saneamento voltado para o reuso. O efluente de uma estação de tratamento de esgoto é água doce, precisa voltar para o ciclo urbano ou rural da água como água de reuso”, afirma. Austrália e Israel se destacam nessa estratégia. “Em Israel, 80% da água utilizada pelos humanos é de reuso”.

O professor exemplifica o potencial do reuso citando uma proposta feita por ele ao governo do Estado há vinte anos, que visava transformar a Estação de Tratamento de Esgoto de Camburi em uma EPAR, Estação Produtora de Água de Reuso, para abastecer o complexo portuário e industrial de Tubarão, onde estão as poluidoras Vale e a ArcelorMittal.

“Seriam 600 litros de água de reuso por segundo para a Cesan [Companhia Espirito-Santense de Saneamento] vender para o complexo. Equivale a uma população de 300 mil habitantes. Aliviaria muito o ciclo urbano da água, porque a nossa região é alimentada por rios pequenos. Santa Maria e Jucu são considerados pequenos, perante o tamanho da nossa região metropolitana”.

Projeto nesse sentido foi anunciado somente em janeiro passado, por meio de uma parceria entre as duas empresas e a Cesan. E é preciso expandir a ideia. Além de pequenos, os rios Santa Maria e Jucu tendem a sofrer alterações crescentes de seus regimes de vazão. A construção de uma barragem, também como previsto pelo governo do Estado, pode ajudar, mas não é suficiente. “O reservatório com barragem pode equalizar vazões. Isso ajuda muito, mas não é a solução”.

Controle de perdas

Já as perdas de água tratada na Grande Vitória são alarmantes, ultrapassando os 30%, informa o professor da Ufes. “Nossa região metropolitana deve captar 3 a 4 metros cúbicos por segundo do Santa Maria e Jucu. Com 4m³, é possível abastecer 2 milhões de habitantes. Os 30% de perda equivalem a 1,2 m³ por segundo”, calcula.

É um montante semelhante ao pretendido pela usina de dessalinização que a Cesan almeja para algum ponto do litoral capixaba entre Aracruz e Anchieta, ao custo de R$ 500 milhões e um consumo imenso de energia elétrica. “Um metro cúbico de água dessalinizada consome 3 a 4 KW por hora. De onde vai vir toda essa energia? E por que todo esse consumo, se podemos internamente otimizar o sistema?”, questiona.

Renaturalização dos rios

Em relação à renaturalização dos rios urbanos, há experiências acontecendo em alguns países. “Na Coreia do Sul, renaturalizaram o rio que corta a capital, Seul, que era como o Tietê, de São Paulo. Resgataram esse corpo d’ água”. O trabalho consiste em retomar ao máximo possível o traçado que os rios tinham antes da ocupação humana. “Com vegetação, sem retificação, respeitando a segunda calha”, descreve.

O Brasil ainda não tem uma experiência como essa, mas há que se destacar o intenso trabalho de despoluição do rio Tietê, que é importante também e, talvez, deva preceder a retomada do seu traçado inicial e reflorestamento. O canal da Leitão da Silva e o canal da Costa são dois exemplos na Grande Vitória que precisam desse investimento. “Tem que construir a rede de esgoto, coletar e tratar, e não deixar que o esgoto chegue nesses corpos d’ água. Coletar e tratar desde a nascente”.

‘Pensar global, agir loca’

Enfrentar esse problema é algo de grande complexidade, exige planejamento e reeducação da população, convoca Ricardo Franci. “O presente e o futuro de nossas cidades dependem de um amplo movimento de adaptação de nossa sociedade. O que fazer? Pense globalmente e aja localmente. Essa é uma máxima bastante conhecida pelos ambientalistas e profissionais de meio ambiente e talvez nem tanto pelos demais cidadãos”.

Em ano de eleições municipais, a adaptação à crise climática deveria ser pauta de todos os candidatos, mas até o momento, não é o que os discursos e as ações práticas indicam. “Na Darly Santos, por exemplo, estão aterrando todas as áreas alagadas e vendendo terrenos caríssimos. Mas justamente na segunda calha [área paralela à calha principal do rio, que é tomada naturalmente pelas águas quando há cheias] do rio Aribiri. Como frear isso? Não é fácil implementar uma rígida política de ocupação do solo em nossas bacias hidrográficas urbanas, frente aos interesses da construção civil e diante do elevado déficit de moradias de interesse social. Mas é uma questão que precisa ser controlada pelas prefeituras, não pode ocupar, desmatar, aterrar”, pondera.

Somado ao tripé de reengenharia do ciclo urbano da água, o que inclui a desocupação da segunda calha dos rios, é preciso implementar em larga escala o aproveitamento da água da chuva e as edificações sustentáveis. E, ao lado dessas medidas estruturantes, trabalhar também as não estruturantes, que envolvem educação e conscientização da população, além de reduzir as emissões de gás carbônico.

“Para o cidadão, importa adotar práticas de consumo consciente para reduzir a sua pegada ecológica. Para as empresas, é necessária uma agenda ambiental agressiva no que se refere às emissões de gases de efeito estufa, o que reserva à Findes [Federação das Indústrias do Espírito Santo] um importantíssimo papel. E dos governos federal, estadual e municipais, além da tarefa inevitável de remediar a situação atual, será necessário um esforço de planejamento integrado para adaptar nossa sociedade aos novos tempos. Podemos tirar partido desta nova realidade se entendermos que não estamos isolados nesta biosfera em franco processo de adaptação às alterações dos grandes ciclos planetários”.


Sustentabilidade para quem?

Quando os governos adotam ponto de vista das grandes corporações, debate sobre crise climática se limita ao balcão de negócios


https://www.seculodiario.com.br/meio-ambiente/sustentabilidade-para-quem

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