Três pescadoras atingidas falam por todos que tiveram o lucro cessante suspenso: “queremos reparação de verdade!”
Ainda é difícil de acreditar na mais recente ação de violência da Fundação Renova contra os atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana/MG, de propriedade da Samarco/Vale-BHP, ocorrido em cinco de novembro de 2015, considerado o maior crime socioambiental da história do país.
Apesar de criada em 2016 para executar os programas de compensação e reparação dos danos advindos do desastre, sob fiscalização do Comitê Interfederativo (CIF) e suas câmaras técnicas, e mediante os acordos extrajudiciais firmados entre as empresas criminosas, o Ministério Público Federal e outros entes públicos, a Renova tem se mostrado um grande engodo, desrespeitando os acordos e metas de reparação e compensação, se negando a contratar as assessorias técnicas escolhidas pelos atingidos – prontamente contratadas no caso de Brumadinho – rescindindo contrato coma a Rede Rio Doce Mar, disseminando a discórdia entre as comunidades atingidas, e tudo isso pagando salários altíssimos a seus empregados, e mantendo contratos caríssimos com agências de publicidade e escritório de advocacia, e com aumento de seus lucros anuais.
Nos últimos dias de março, a Renova decidiu não pagar o lucro-cessante referente ao ano de 2020 aos atingidos do litoral norte do Estado, sem qualquer embasamento técnico, visto que a região é reconhecida pela Deliberação nº 58/2017 do CIF e que os impactos da lama de rejeitos, passados mais de cinco anos, continuam ativos e com mais gravidade, em relação a alguns parâmetros medidos.
Pegos de surpresa, os atingidos ainda não sabem sequer como e a quem recorrer para receberem o pouco que vinha sendo pago, dentro de um espectro muito maior de prejuízos, ainda não medidos e que lhes é devido pelas mineradoras.
“Essa estratégia de cortar o lucro-cessante é igual às cartas que a Fundação Renova mandou em 2020, cancelando o AFE [Auxílio Financeiro Emergencial] porque não éramos impactados. Esse ano nem carta ela mandou. Nem apresentou os laudos comprovando. Esse mecanismo da Fundação Renova é para obrigar o pescador a aderir a quitação geral. É um momento muito confuso a judicialização das questões, retirando autonomia dos territórios de decidirem sobre a resolução dos problemas causados pelo crime da Samarco, Vale e BHP”, explana a pescadora Eliane Balke, moradora de região do Nativo, em São Mateus.
A consciência sobre as estratégias que a Renova vem adotando, contrariamente a todos os termos de ajustamento de conduta (TACs) assinados por ela e suas empresas mantenedoras, Eliane vem iluminando a partir da vivência como atingida, participando das reuniões das organizações que apoiam a luta dos atingidos, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Pastoral da Pesca, os órgãos de justiça MPF e Defensorias Públicas, e diversos coletivos de pesquisadores, militantes, artistas, estudantes, que vêm realizado atividades de apoio à saúde financeira, física, emocional e psicológica dos atingidos.
Não é doce morrer no mar de lama
“Não é doce morrer no mar”, poetiza Eliane, inspirada na famosa canção de Dorival Caymmi, abrindo um longo texto que escreveu na véspera, quando agendamos nossa entrevista por telefone, para repercutir o impacto do último golpe da Renova contra as vidas dos atingidos. “Mudou a minha vida após cinco de novembro de 2015. É uma terrível experiencia de vida, com a contaminação pelos rejeitos da Samarco, Vale e BHP”, resume, durante a entrevista, em que convidou outras duas amigas pescadoras para contribuem com seus depoimentos.
Tania e o marido vieram de Belo Horizonte em busca de mais qualidade de vida. O marido pescava camarão em barcos de amigos. Ela limpava o camarão e às vezes também pescava siri e caranguejo, de linha, no rio. O marido recebe uma pequena aposentadoria, ela tinha apenas a renda da pesca. O quarto de aluguel para turistas completava o faturamento, mas desde o crime contra o Rio Doce, também o turismo foi gravemente afetado.
A saúde financeira deprecia junto com a saúde física e mental. “Segundo as reuniões que a gente vai aqui, a contaminação por metais pesados, por consumir o pescado, é gradativa, não percebe na hora. Eu tomo remédio controlado pra ansiedade e antidepressivo. O consumo de peixe a gente diminuiu porque fica com medo. Os metais pesados afetam a mente, neurológico. Eu já tenho ansiedade, fica receosa”, conta.
“A gente não pode ficar parada, se não, fica sem dinheiro e vem a depressão. O dinheiro traz um conforto pra você pra quem está perto de você, um familiar, um amigo que você pode ajudar. O dinheiro vem do trabalho, e cadê o trabalho? Procuramos alternativas pra isso e a Renova não mostrou nenhuma alternativa de trabalho”, denuncia. Enquanto isso, a própria comunidade vai procurando alternativas, com apoio dos coletivos, movimentos e órgãos públicos. As pescadoras de São Mateus fizeram um curso da Marinha em dezembro, para obterem autorização de pesca em alto-mar. Também fazem oficinas de produtos medicinais da aroeira, planta abundante da região. “A gente está numa situação instável. Não sabe a quem recorrer e o que recorrer. O que vai ser de nós? Queremos que os órgãos competentes nos ajudem”, roga.
“A extensão de lama de rejeitos de minério da Samarco/Vale-BHP, segundo a rede rio doce mar, o rio e o mar são áreas impactadas variando em relação a distância da Foz do Rio Doce”, afirma, remetendo-se à última reunião realizada pela Rede Rio Doce Mar (RRDM), formada por 26 universidades públicas federais, incluindo a capixaba Ufes, que tem produzido estudos e relatórios sobre a extensão do impacto dos rejeitos sobre a biodiversidade do rio e do mar, bem como sobre as comunidades humanas que vivem em sinergia com esses recursos naturais.
“Dá tristeza de ir ao rio e ao mar e não trazer nada. Mas dá mais tristeza ainda não ser reparada. A questão do rio e do mar poderia ter um plano pra recuperar. Mas o plano pra recuperar é o corte dos auxílios? Esse é o plano de reparação em plena pandemia?”, questiona, indignada.
“Aqui em casa em plantei uns pés de melancia. Ao molhar, as folhas ficam enrugadas. Nos pés de abóbora, os frutos ficam pequenos e não desenvolvem. O amendoim todo enferrujado, o feijão nasce, mas não dá grão. As ostras estão muito pequenas. Muitas morreram e estão cobertas pelo rejeito de minério. Não tem como pegar para comer nem vender. Caranguejos diminuíram sua população. Estão pequenos. Está difícil”.
“Eu não quero a quitação geral. Vamos continuar recebendo AFE até que o pescado e a água estejam próprios para o consumo. A entrada do juiz junto as comissões de atingidos criadas por advogados para negociação das indenizações trouxe muitos danos aos atingidos. A quitação geral, valores rebaixados, e perda do protagonismo das vítimas nos acordos em seus nomes, o abuso de advogados e advogados por assédio via novas comissões e a negociação de valores indevidos”, repudia.