Quilombolas do Sapê do Norte apoiam comunidades do sul da Bahia que também têm território violado pela Suzano
“Não vamos aceitar nenhum empreendimento que não faça consulta prévia”. A posição firme vem das comunidades que integram o Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, entre São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Estado, e é resultado da finalização do Protocolo de Consulta referente à implementação das diretrizes estabelecidas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O Protocolo estabelece as condições que qualquer empreendimento, público ou privado, precisa atender mediante os direitos das comunidades quilombolas dentro de seu território, que já está certificado pela Fundação Palmares, aguardando titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). E configura mais um instrumento que visa proteger as comunidades das constantes agressões promovidas, principalmente, pela multinacional Suzano Papel e Celulose, conforme seguidas vezes já noticiou Século Diário, a partir de denúncias formais feitas pelos moradores.
“Vamos levar o Protocolo para todos os setores da Justiça e do governo. Não vamos aceitar nenhum empreendimento que não tenha consulta prévia”, conta Domingos Firmiano dos Santos, o Chapoca, liderança nacional da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e membro da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.
A expectativa agora, com o novo governo federal, é que também as titulações avancem, cumprindo a pauta primordial da luta quilombola. “Primeiro que tem que fazer é demarcar e titular. O governo tem que resolver isso! Não dá mais para as comunidades ficarem nessa situação. Nós não podemos perder a nossa cultura, as nossas manifestações religiosas, a educação quilombola tem que ser rediscutida e aplicada, porque a medicina tradicional é importantíssima, as nossas danças, o nosso modo de viver”, reivindica.
Chapoca lembra que já faz vinte anos que foi publicado o Decreto 4.887, no início da primeira gestão do presidente Lula (PT), que regulamenta todo o processo necessário para a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas do Brasil. Questionado por grupos políticos de direita, o decreto foi considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, mas desde então não houve avanços, devido em grande medida à resistência do então presidente Michel Temer (MDB). O retorno de Lula enseja um horizonte de mais avanços.
“O Governo Lula foi um começo, de organização e preparação de todos esses processos. Hoje estão quase todos prontos, é só executar. Os estudos antropológicos, geográficos, cartoriais, foram todos feitos nas comunidades. Agora cabe ao governo executar. Vamos pressionar o governo para titular esses territórios nesses quatro anos”, afirma o líder quilombola, acrescentando que também em âmbito estadual, a luta é por reconhecimento e ações concretas.
“É uma vergonha!”
“Entra governo, sai governo e não resolve. Agora tem uma mesa criada aqui no Espírito Santo, de resolução de conflitos, onde nós ficamos um ano conversando sobre o formato do documento que vai definir a abertura das áreas para as comunidades, que estão sufocadas, mas não acontece nada”, salienta Chapoca, referindo-se a terras já certificadas como quilombolas, mas que permanecem ocupadas por eucaliptais da Suzano. “Vamos pressionar o governo Casagrande, porque se ele foi reeleito também foi graças a nós. O governo do Estado pode entregar as terras patrimoniais, que eram as terras devolutas antigamente”.
Sem ação firme do Estado, a empresa continua se beneficiando do uso da terra e promovendo ações de greenwashing (maquiagem verde, no jargão ambientalista) para seus acionistas e clientes. “O que as empresas fazem é oferecer ‘projetinhos’ de migalhas. E sempre que a gente começa a fazer movimento de retomada de território, eles vêm com proposta de projetos, de edital, de entregar 1,5 mil, dois mil reais para as famílias, dar algum emprego … O que não resolve nada, só cria mais conflito. Isso é para desarticular o movimento, mas ela não vai conseguir”.
A situação, afirma, é lamentável. “É uma vergonha para o Estado e para a própria empresa o que eles fazem. Tentam enganar a gente na cara de pau. Não tem besta aqui, não tem otário. Precisa resolver isso imediatamente”, sentencia.
Chapoca conta que os mesmos abusos sofridos pelas comunidades capixabas estão sendo impostos aos quilombolas ao norte do rio Mucuri, já em território baiano. “No extremo sul da Bahia é um desrespeito muito grande. A empresa tem que fazer consulta, conversar com as lideranças, mas não faz. Vamos levar nosso protocolo de consulta para lá e continuar apoiando a luta deles, que também é nossa. Somos uma família só, somos originários da mesma região da África”.
Extremo-sul da Bahia
Atualmente, oito comunidades quilombolas da região estão denunciando, ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) o desmate que a Suzano está promovendo dentro do território quilombola, para construção de uma estrada que sirva para o transporte de eucaliptos. “A obra da estrada já passou por Mucuri e agora está em Nova Viçosa e Caravelas”, relata Célio Leocádio, presidente da Associação Quilombola de volta Miúda Caravelas (APRVM) e da Cooperativa Quilombola do Extremo Sul da Bahia (Coopqes).
O documento é do Conselho das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Território de Identidade Extremo-Sul da Bahia e dá conta de degradação de mananciais, de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) e de caminhos tradicionais das comunidades quilombolas, com “risco à saúde física, mental, bem como os riscos inerentes às fatalidades já ocorridas pela intensificação do tráfego no interior dos territórios”.
O pedido é por “consulta prévia imediata, bem como a paralisação de toda e qualquer obra de infraestrutura em andamento, pois decorre de manifesta ilegalidade”, afirmam as lideranças das comunidades de Volta Miúda, Rio do Sul, Helvécia, Naiá, Mutum, Cândido Mariano, Vila Juazeiro e Mota.
Educador na Federação dos Órgãos para Assistência social e Educacional no Espírito Santo (Fase/ES), Beto Loureiro conta que a ONG também não vê divisas estaduais na luta quilombola na região, ao contrário, o que ocorre no sul da Bahia impacta de alguma forma o norte do Estado e vice-versa. “A Suzano Bahia Sul se instalou em Mucuri porque o Vitor Buaiz [PT], quando foi governador, não deixou ela abrir mais uma fábrica de celulose no estado [já que já havia a Aracruz Celulose, em Aracruz]”, conta.
Depois dessa, complementa, outra fábrica de celulose instalada na região foi a Veracel. “É uma sociedade da Stora Enzo com a antiga Aracruz Celulose. Ou seja, esse mundo de eucalipto que tem aqui é da mesma Suzano hoje. Então não temos porque não adentrar essas regiões e denunciar os impactos que causa lá”, avalia.