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‘Nesse momento de alta do arroz, podemos dizer que é o milho que nos resgata!’

Chefe de Cozinha Sazonal Orgânica, Ligia Sancio defende vantagens do milho que vão muito além do preço

Ligia Sancio

Chef de Cozinha Sazonal Orgânica e pós-graduanda em Gastronomia História & Cultura pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial de São Paulo (Senac-SP), a capixaba Ligia Sancio defende há muito uma maior (re)inserção do milho nas mesas do Brasil e do Espírito Santo. A alta do preço do arroz durante a pandemia da Covid-19 (mais do que dobrou desde o início do ano, na maioria dos estados), afirma, é talvez o incentivo financeiro que faltava. 

“Milho é o nosso alimento totem”, poetiza, sintetizando a conexão milenar do cereal dourado, desde os povos americanos mais antigos. Até hoje, o milho é o cereal mais abundante nos campos cultivados do Novo Mundo.

O arroz tem experiências importantes, como a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Rio Grande do Sul, maior produtor brasileiro de arroz orgânico e que doou toneladas do alimento para as famílias mais vulneráveis e vulnerabilizadas pela pandemia. Há também importantes experiências em algumas localidades camponesas do Espírito Santo, como Nova Venécia (região noroeste), porém, o milho é o cereal que produz abundantemente em todo o território e praticamente durante o ano todo. 


E quanto mais nativo e menos industrializada a semente de milho, melhor. No Ensaio de Milho Crioulo na comunidade de Fortaleza, em Muqui, sul do Espírito Santo, por exemplo, umas das primeiras iniciativas de milho crioulo do Estado e uma das mais bem-sucedidas do país (o Brasil se destaca em pesquisas e produção de sementes crioulas, ao lado de outros países em desenvolvimento, como Índia e Cuba), a produtividade de variedades crioulas como a Fortaleza e a Eldorado, que costumam se revezar no topo das preferidas dos agricultores a cada avaliação anual, a produtividade chega a ser maior que a média das híbridas e dificilmente é menor.

Além disso, o custo de produção das crioulas é de apenas 10% do valor das encontradas no mercado, segundo dados do projeto, e elas não precisam de todo aquele arsenal de insumos, principalmente adubos e agrotóxicos, necessários à produção convencional com híbridos.

Agroecologia
Híbridas na agroecologia? “Não funciona”, sentencia o engenheiro agrônomo José Nunes Arcanjo, um dos idealizadores do ensaio em Muqui, atual secretário municipal de Desenvolvimento Rural de Atílio Vivacqua. “A pesquisa no Brasil sempre trabalhou desenvolvendo híbridos pra alto consumo de insumos. Todos os centros de pesquisas fizeram isso nas universidades”, lamenta.
Outra vantagem das crioulas tem a ver com a segurança alimentar: por serem nativas de uma determinada região e, muitas vezes, melhoradas localmente, através de seleção das espigas pelos próprios agricultores, a possibilidade dessa semente produzir em condições adversas é muito maior do que as “estrangeiras” híbridas. “Com isso nós garantimos a produção. Mesmo que ocorram problemas climáticos, ela ainda assim vai conseguir produzir alguma coisa”, explica Arcanjo.

Sem falar que, com as genuínas, o produtor é o dono da sua própria semente, pode replantá-la infinitamente. Em Fortaleza, por exemplo, os produtores já são autossuficientes em sementes de milho. As híbridas e transgênicas, ao contrário, perdem produtividade, obrigando o agricultor a comprar novas sementes no mercado a cada safra.

Amor como ingrediente
Esse trabalho amoroso e artesanal dos agricultores familiares e camponeses, ressalta Ligia Sancio, é ingrediente essencial para uma boa alimentação. “A base de uma alimentação saudável parte dessa confiança no agricultor familiar, que está em campo na lida diária produzindo com amor. Falar de alimento saudável é falar de pessoas saudáveis, de terras saudáveis, de ambientes saudáveis, de lares saudáveis”, descreve. “Cozinhar é se relacionar afetivamente com o alimento”, afirma, acentuando: “Na cozinha sazonal, nossos cardápios são determinados pela natureza”. 
Na entrevista a seguir, a chef sazonal e orgânica aborda as principais vantagens culturais e gastronômicas do milho, defende a alta do arroz como oportunidade para ressignificar e reposicionar o cereal americano na culinária brasileira e capixaba, e apresenta duas receitas práticas à base de fubá e canjiquinha.
Helena Rocha/A Quadra

A alta do preço do arroz é uma oportunidade de resgatar o lugar do milho na culinária capixaba/brasileira/latino-americana?


A alta dos preços evidencia o quão cruel é o modo de pensar a vida no sistema econômico vigente. Com galpões e estoques abarrotados de grãos, a instabilidade social somada à crise de saúde planetária do coronavírus são interpretadas como circunstâncias propícias para lucrar em cima de quem não tem escolha. Lucrar em cima de quem passa fome. É ultrajante.

Nesse contexto, é ainda mais importante voltarmos o olhar para o que está sendo produzido perto da gente. E falando do milho, estamos falando de Abya Yala, Pindorama, Anauhuac. Estamos falando dos Povos Originários na América Latina e do cereal domesticado por eles há mais de 7 mil anos. Nesse momento de alta do arroz, podemos dizer que é o milho que nos resgata! Não fosse a pandemia eu estaria, nesse momento, comendo milho verde com sal na beira da praia, coisa que aprendi ainda bem menina!

Quais as principais qualidades nutricionais e culinárias do milho como cereal base da alimentação? Como utiliza-lo no dia a dia (combinações, preparo…)


Eu prefiro falar da importância cultural do consumo do milho no nosso cotidiano, mais do que seu valor nutricional. A ciência da nutrição é um tanto controversa e caminha segundo interesses nem sempre com foco na saúde humana, como demonstra Marion Nestlé em seu livro Uma Verdade Indigesta.

Saber de quem herdamos os modos de consumo do milho nos aproxima de nossas raízes ancestrais. E saber que foram os grupos étnicos guaranis que nos ensinaram o manejo do milho no Brasil, do plantio ao prato, ou cumbuca, é fundamental para compreendermos a real importância dos povos indígenas em nossos hábitos alimentares contemporâneos. O sociólogo Carlos Alberto Dória, em seu mais recente livro, A culinária caipira da Paulistânia, traz no capítulo dedicado à cozinha dos guaranis, uma lista de receitas com o milho, ou avati/awaxi. O autor pontua que “as comidas derivadas do milho eram muitas, e algumas delas, com pequenas modificações, são identificáveis até hoje como ancestrais de muitos alimentos da tradição considerada brasileira”. Mbayapi, por exemplo, é polenta.

Mas nem só de polenta vive um capixaba, não é mesmo!? E por aqui, apesar da mandioca caiçara ser rainha, o milho também tem o seu lugar. Do milho verde, como no Brasil todo, aprendemos o bolo de milho fresco, papa, pamonha, curau, ou simplesmente cozido com sal. Este encontramos pelas esquinas da cidade, especialmente nas praias.

Já fubá de milho bem fininho e aromático, comum por essas bandas, encontramos o quilo variando entre R$ 2,50 a R$ 4,50. É um ótimo custo-benefício! A farinha de milho rende bastante e sacia! Com o fubá podemos engrossar caldos, preparar sopas leves com legumes e ervas aromáticas, e com a polenta firme e gelada, podemos cortar pedaços e assar, até dourar e ficar bem crocante.

Com o fubá também se faz bolo, biscoito, broa e se comparado ao uso tradicional que fazemos do arroz, no milho encontramos mais variações.

A canjiquinha do milho também é bem comum por aqui. Com ela gosto de fazer bolinhos bem temperados e assados, para molhar no caldo do feijão fresco. O preparo é bem simples, é comida do dia a dia: cozinhe a canjiquinha bem firme e reserve na geladeira, de um dia para o outro. Adicione um pouco do fubá fininho, para dar sustentação aos bolinhos, e tempere com bastante tempero verde, sal e azeite. Molde com uma colher e coloque na assadeira untada. Asse em fogo a 200 graus até formar uma casquinha crocante e dourada.

Quais as vantagens do milho quando se pensa em segurança alimentar no Espírito Santo?


A segurança alimentar está diretamente associada à conquista da autonomia alimentar. E quem possibilita o caminho mais seguro nesta direção são as pequenas famílias campesinas, com manejos agroecológicos e orgânicos. As pequenas unidades de produção campesinas trabalham em uníssono com os ciclos das estações, não usam defensivos agrícolas, herbicidas, insumos químicos. Ao contrário, preservam matas ciliares, não emitem gases tóxicos, são os heróis modernos, os plantadores de água! A variedade de frutas, verduras, legumes e cereais que está na mesa dos brasileiros não é produzida pelo setor do agronegócio. O agronegócio produz insumos para preparos de ração animal ou matéria-prima para o setor industrial. O milho produzido em monocultivo de larga escala não está na mesa do brasileiro, este é commodity, não fica aqui.

E porque essa segurança e soberania alimentar passam, necessariamente, pela produção orgânica e pelas sementes crioulas?


As sementes crioulas estão vivas! Elas trazem o sopro da vida dentro de cada semente. São muitas variedades! Esse milho amarelo que conhecemos é só uma delas. Existem milhos de todas as cores, do preto ao branco, com variações lindas de vermelho, roxo, azul. Recuperar, guardar, trocar sementes crioulas é de importância vital para o nosso futuro! São a nossa garantia de autonomia alimentar, da sua variedade e abundância.

As sementes de milho comercializadas pelas gigantes multinacionais do agronegócio, como a Singenta e a Monsanto, são estéreis e obrigam o produtor rural a comprar todo ano novas sementes para fazer novo plantio do milho em larga escala. Veja o absurdo! O milho foi modificado geneticamente para não poder brotar! E só piora! Este milho geneticamente modificado exige o uso do pacote de agrotóxicos produzido pela Bayer, há poucos anos fundida à Monsanto! Eles vendem o veneno e o remédio!

Receitas

Ligia Sancio

Inspiração guarani: Bolachas crocantes de milho fresco e mel

1.Pré-aqueça o forno a 200 graus;
2.Debulhe cinco espigas de milho verde e bata os grãos no liquidificador, com um pouco de água, o suficiente para conseguir processar bem;
3.Coe e separe o bagaço do sumo;
4.Em uma tigela de tamanho médio, junte o bagaço do milho (nada se perde do milho!), duas conchas do sumo do milho, uma colher de sopa de pasta de amendoim, uma xícara de farinha flocada de milho e 5 colheres de mel;
5. Unte a forma com óleo;
6.Incorpore bem a massa, faça bolinhas com as mãos e amasse com as costas da colher, para ficarem em formato de bolacha;
6.Cubra a forma com papel manteiga e asse até ficar bem dourada, por cerca de 40min;
7.Sirva com um fio de mel

Ligia Sancio

Inspiração portuguesa: Bolo molhado de milho verde fresco

1.Pré-aqueça o forno a 200 graus;
2.Debulhe cinco espigas de milho verde e bata os grãos no liquidificador, com um pouco de água, o suficiente para conseguir processar bem;
3.Coe e separe o bagaço do sumo;
4.Cozinhe o mingau mexendo sempre, para não formar grumos;
5.Bata a clara em neve de dois ovos e reserve as gemas;
4.Em uma tigela de tamanho médio, junte o bagaço do milho (nada se perde, lembra?), uma concha grande do mingau quente, uma xícara de fubá fininho, ¾ de óleo de coco e uma xícara de açúcar demerara. Incorpore bem;
5.Unte uma forma redonda de 20cm com furo no meio;
6.Adicione as duas gemas e, mais uma vez, misture bem;
7.Adicione uma colher de sopa de fermento e em seguida as claras em neve, com movimentos leves, de cima para baixo;
8.Coloque com cuidado na forma e asse por 40min, até que as laterais estejam cor de caramelo;
10.Sirva com um café bem fresquinho, um fio de mel e canela.

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