“O conjunto de atores que atua em Mariana e Brumadinho é o mesmo, mas em Brumadinho há avanços incríveis [em favor dos atingidos] e em Mariana, o processo de reparação é totalmente conduzido pela Renova, controlado pela Vale e BHP. O criminoso controla o processo de reparação, ele diz quem é a vítima e quanto ela deve receber, provocando desespero na bacia do Rio Doce”.
As palavras são do promotor André Sperling, do Ministério Público Estadual de Minas Gerais (MPMG), um dos agentes que atuam nas duas Forças-Tarefas, do Rio Doce e de Brumadinho, na defesa dos atingidos pelos crimes ambientais ocorridos em 2015 e 2019, respectivamente.
A comparação foi feita durante coletiva de imprensa realizada no último dia 29, em alusão aos cinco anos do crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, completados nesta quinta-feira (5), que contou com a presença dos demais integrantes da Força-Tarefa Rio Doce, que reúne também procuradores do Ministério Público Federal do Espírito Santo e Minas Gerais (MPF/ES e MPF/MG) e defensores públicos da União e dos dois estados atingidos (DPU, DPES e DPMG), sendo que os agentes mineiros, via de regra, atuam nas duas Forças-Tarefas.
Em Brumadinho, relatou André Sperling, o juiz estadual Elton Pulpo rapidamente determinou a contratação de assessorias técnicas (ATs) a todos os atingidos, contrariando ações judiciais da Vale, que agora tem um recurso tramitando no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) com objetivo de inviabilizar o trabalho das ATs.
A conquista, ressaltou o promotor, “até hoje não saiu do papel no caso de Mariana”. Apenas cinco foram contratadas até agora, diante de uma demanda de 23 para atender a todas as comunidades, desde Bento Rodrigues/MG até o litoral capixaba. “Infelizmente, o Poder Judiciário não decide em Mariana sobre Assessoria Técnica. Não há decisão”, denuncia.
“Desde o início também, se comparar com Brumadinho, houve processo de negociação muito bem conduzido pelo doutor Elton Pulpo que hoje reflete em 100 mil pessoas recebendo valores pra se sustentar diante desse crime da Vale. Isso nunca chegou perto de acontecer na bacia do Rio Doce”, repudia.
O promotor ressaltou a celebração do Termo de Ajustamento de Conduta sobre a Governança (TAC-Gov) com as empresas e sua homologação em 2018 pelo juiz da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte/MG, Mário de Paula Franco Junior, cinco meses antes do crime de Brumadinho.
O objetivo do TAC-Gov, ressalta, foi garantir maior participação dos atingidos nas tomadas de decisões sobre o processo de reparação e compensação, por meio principalmente das ATs. Mas nem ele nem os demais acordos firmados com as empresas criminosas são colocadas em prática.
“Tudo está sendo posto de lado por decisões do juiz da 12ª Vara”, apontou, citando, como última excentricidade, a criação, pelo magistrado, de “uma matriz de danos que [ele] tirou da cartola, sem nenhum tipo de participação de perícias ou das instituições de justiça (…), com valores ridículos, baixos, que absolutamente não fazem reparação integral, e que, para receberem esse dinheiro, [os atingidos] são obrigados a assinar um termo de quitação em que desistem de todos os seus direitos, inclusive na ação que corre na Inglaterra”, relata.
Na prática, resume, essa matriz de danos e o termo de quitação a ela associado “estão destruindo tudo o que foi pensado em reparação coletiva, as pessoas não terão mais nenhum direito se aceitarem essa esmola. O objetivo das mineradoras é correr o mais rápido possível com isso, pegar seus recibos de quitação, e dar tudo por encerrado”, expõe.
Lucrando com a morte
A contaminação tem aumentado no rio e no mar, ressaltou o promotor, e as pessoas não podem ter suas vidas de volta ao normal. “Mas está sendo criada uma ideia de que a situação está resolvida por esses recibos espúrios, que só servem às empresas e aos advogados que estão ganhando dinheiro com esses processos de reparação, dinheiro que está sendo descontado dos atingidos. Isso é perverso, mas nós não vamos arrefecer”, afirmou.
Somente as diferenças tão gritantes na atuação dos juízos responsáveis pelos processos do Rio Doce e de Brumadinho explicam as disparidades no acesso aos direitos dos atingidos nas duas situações, argumentou André Sperling, pois na dimensão econômica, ambos desastres possuem a mesma origem. “Tanto Mariana quanto Brumadinho fazem parte de um complexo de situações implementadas no Brasil como um todo a partir de uma lógica empresarial em que o lucro está acima da segurança. Manutenção [de barragens de rejeitos] é cara. O lucro das empresas gerou essas situações de risco e mortes”, repudiou.
Os lucros bilionários da Vale, divulgados no último dia 28, e “a comemoração dos investidores sobre possibilidade de recebimentos de dividendos” também foram destacados pela coordenadora-geral da Força-Tarefa Rio Doce, a procuradora da República Silmara Goulart. No terceiro trimestre deste ano, a mineradora lucrou R$ 15,62 bilhões, o triplo do resultado no trimestre anterior (R$ 5,29 bilhões) e mais do que o dobro do registrado no mesmo período de 2019.
“Precisamos, como sociedade brasileira e como comunidade mundial, refletir sobre como as pessoas podem estar hoje alegres com esse anuncio às custas do sofrimento e do desespero das pessoas atingidas”, propôs. “Sonho como uma sociedade em que empresas com poder econômico tão grande como a Vale, a BHP e a Samarco, tenham investidores que realmente se comprometam com a vida e passem a cobrar investimento em desenvolvimento sustentável e reparações dignas e justas para os atingidos”, compartilhou.
Processo criminal
A falta de empatia dos investidores, invocada pela procuradora, é agravada pela saída, do processo criminal, da maioria dos réus inicialmente acusados pelo MPF. Iniciado em dezembro de 2016 com quatro pessoas jurídicas (Samarco, Vale, BHP Billiton e a consultoria VogBR, responsável pelo laudo técnico que atestava segurança da barragem que rompeu), e 22 pessoas físicas como réus, o processo hoje tem apenas sete pessoas físicas e as mesmas quatro jurídicas.
“Ao longo do tempo muitas dessas pessoas foram sendo excluídas do processo, porque o Judiciário entendeu que não teriam elo muito forte com o crime”, disse o procurador da República Gustavo Henrique Oliveira, referindo-se a membros da alta governança, que representam a Vale e a BHP na Samarco. “O MPF discorda. A acusação do MPF entende que o rompimento é muito mais do que reflexo de um erro de engenharia, mas sim de uma decisão econômica da companhia”, argumenta.
O procurador levantou alguns números que balizam a argumentação. Primeiro, a queda brusca de 77% do preço do minério de ferro, de US$ 180 em 2011 para US$ 40 em 2015, em contraste com o incremento considerável do lucro da Samarco no período. “A perícia constatou que duas coisas explicam isso: aumento substancial da produção e redução de custos”, disse Gustavo.
Sim, além de aumentar a produção, a mineradora reduziu os investimentos em segurança, que foram 42% menores, quando comparados os anos de 2011 e 2015. “Muita produção gera muito rejeito e um alteamento muito intenso da barragem. O maciço ficou com uma pressão muito grande”, acentua. Se em 2015 tivesse sido mantido o mesmo volume de investimentos de 2012, com a devida correção dos valores, deveria ter sido investido R$ 30 milhões e não os R$ 18 milhões que foram empregados, informou o procurador, ressaltando: a previsão para o ano seguinte era de um valor ainda menor, de R$ 15 milhões.
“Isso mostrou que foi uma decisão econômica. Os riscos das comunidades a jusante de Bento Rodrigues eram conhecidos, mas foram deixados de lado por essa decisão de reduzir os custos”, aduz, citando ainda a existência de relatórios e recomendações, na própria cúpula de governança da empresa, pedindo “foco nos riscos catastróficos” para as comunidades e a retirada dos moradores de Bento Rodrigues. A última reunião dessa cúpula antes do rompimento, no entanto, falava em maximizar os pagamentos de dividendos aos acionistas, fazendo com que as recomendações de segurança não fossem cumpridas.
“Havia um sistema de reporte de risco sofisticado, apontando falhas críticas no processo de implementação de barragens. Não eram detalhes técnicos de engenharia, mas dados fundamentais para a escolhas de gestão”, relatou. “A exclusão dos membros executivos da alta cúpula é errada”, assevera.
Desinformação
A ganância que provocou o rompimento da Barragem de Fundão continua guiando todo o processo de reparação e compensação, concluiu a coordenadora Silmara. “Em cinco anos, faltam resultados, falta reparação, empatia e humanidade para com os atingidos”, lamentou. Ao invés de repararem os danos, sublinhou a procuradora, as empresas têm preferido “investir na contratação dos maiores escritórios de advocacia do país para negar direitos dos atingidos e contratar agências de publicidades para veicular anúncios na mídia a preços astronômicos em vez de construir soluções”, criticou, anunciando a recomendação enviada para as três mineradoras e a Fundação Renova, na data do dia 29, com várias solicitações visando corrigir a desinformação financiada por elas em peças de propaganda e publicidade em rádio, TV e internet.
“Como entendemos que essas propagandas e divulgações tiveram compromisso maior em autopromover a imagem das empresas que são mantenedoras da Renova ao invés de informar os atingidos e a sociedade em que pé está a reparação, fizemos uma recomendação, acabamos de enviar para as empresas, tratando sobre cada ponto de cada propaganda, de cada fala, de cada folder e anúncio, recomendando medidas de reajuste e retirada dessas propagandas”.