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O discreto centenário de Ruschi

Texto: Rogério Medeiros e Henrique Alves
Fotos: Rogério Medeiros
 
O ano do centenário de Augusto Ruschi salvou-se pelas comemorações feitas com a simplicidade de uma cidade do interior como Santa Teresa, o município da região Serrana do Estado onde o cientista nasceu, em 12 de dezembro de 1915. Reconhecido pelo mundo, especialmente a Europa, o maior naturalista do século XX, recebeu do cronista cachoeirense Rubem Braga a profecia: este assegurou que Ruschi seria o único capixaba lembrado pelo mundo a partir da metade do século XXI.
 
Essa afirmação, que poderia ser eternizada pelo que ele representou na crônica nacional, sobretudo no século XX, caberia em verdade também ao velho Braga. Mas o cronista sempre rejeitou isso. 
 

No Espírito Santo, assistiu nesse período, o período áureo de Ruschi, suas denúncias da questão do pó preto, do desmatamento do Aracruz Celulose (hoje Fíbria) – ele falava pelos anos 60 do século passado, que a Aracruz ia representar um deserto verde para o Espírito Santo, ao trocar árvores nativas por uma espécie exótica, oriunda das regiões frias do planeta. 

 
Disse com todas as letras que as usinas que estavam sendo instaladas no Porto de Tubarão iriam produzir uma poluição que atingiria toda a Grande Vitória. Nesse ponto, foi atacado principalmente pelo jornal A Gazeta, para quem ele não tinha condições científicas para fazer e sustentar tais afirmações. 
 
Foi malhado no Espírito Santo. Mas a realidade, cinza e ululante realidade, está aí: o pó preto, o vento nordeste conduzindo-o para adoecer nossos pulmões, tal e qual Ruschi mais que predizia: alertava. 
 
Foi malhado também porque disse que iríamos respirar dióxido de carbono – estamos respirando até hoje. Nesse período, em que Ruschi previa essas excrescências todas, o mundo acadêmico silenciou. Quem não silenciou, abraçou a causa daqueles que caluniavam e atingiam o conhecimento do homem das matas capixabas. 
 
Esse Ruschi, autor de todas as reservas que sobreviveram no Espírito Santo, correndo atrás dos governos, dividindo os vários ecossistemas da Mata Atlântica, é dele a ideia de preservar a Estação Biológica de Santa Lúcia, que há mais de 50 anos está à disposição das ciências. É considerada a maior coleção de orquídeas e bromélias que se conhece no mundo. Só ali Ruschi realizou mais de 400 trabalhos científicos.
 
A questão primordial na vida de Augusto Ruschi é que ele abdicou dos livros – em termos. Frequentava, antes, as florestas – o que lhe rendeu mais de 300 malárias, fato que logicamente teve influência deletéria em sua vida. Ele mesmo reconhecia que a floresta foi feita para os animais e não para os seres humanos. Mas ele tinha feito sua irrevogável escolha. Passou praticamente 45 de seus 76 anos embrenhado nas matas.
 
Aí entrava o contraste dele com a academia. A cultura eminentemente livresca das universidades não constrangia Ruschi a apontar equívocos constantes nos trabalhos acadêmicos. O mestre lia o livro e depois pesquisava; Ruschi fazia o contrário. Havia uma temeridade da ciência pelas descobertas dele. Como aconteceram: Ruschi questionou verdades com a vida e experiência adquirida na floresta. 

    

Ruschi também foi um estudioso que tinha uma vida tão voltada para a floresta, principalmente para a Mata Atlântica, que em muitos de seus estudos incluiu os índios, principalmente os Tupinikim, valendo-se de suas tradições e conhecimentos para reunir e verificar informação. Trocava informações com eles. Ruschi é do tempo em que Leopoldino era o grande cacique da nação tupiniquim. 
 
Chegou-se a acusar, e muito, Ruschi, quando ele ia aos índios para pedir que flechassem alguns animais, de que ele estava mandando matar os bichos da floresta. Mas o mundo animal, quando não em período de reprodução, pode ser usado para servir à ciência e alimentar os índios. Ruschi ensinou: o que acaba com os animais é devastar seu habitat, justamente o que fez a implantação dos plantios de eucalipto no Espírito Santo.
 
Nós de Século Diário estamos com Rubem Braga: apenas Ruschi será eternizado. Quem mais poderia? Não achamos outro vulto capixaba em condições de ser lembrado eternamente.
 
Essa espécie de balanço do centenário de Augusto Ruschi nos revela que, apesar de ser considerado o Patrono da Ecologia do Brasil, e, lá fora, o maior naturalista que o mundo produziu, a efeméride obrigou aqueles que o combateram, aquela figura a que a imprensa capixaba sempre impingiu a caricatura de mero curioso científico, resultou em uma celebração a portas fechadas, como fez o governador Paulo Hartung, que realizou uma solenidade discreta no Palácio Anchieta.
 
Hartung é a face contemporânea das figuras que Ruschi tanto combateu em vida; um Arthur Gerhardt com os perfumes do século XXI. A mesma imprensa capixaba, notadamente A Gazeta, que açoitou Ruschi em suas páginas, celebra ambos como mártires do Espírito Santo. Redentores de um povo dos grilhões do atraso. Semideuses.
 
O governador tem uma relação estreita, para não dizer pecaminosa, com os grandes poluidores do Espírito Santo. Aracruz Celulose, Vale, ArcelorMittal. Empresas que financiaram suas campanhas. Não faria sentido que ele patrocinasse uma festa aparatosa para quem não revela uma mínima afinidade.
 
A Assembleia Legislativa fez um papelão. Com autoria do deputado Padre Honório (PT), a Casa promoveu sessão solene em homenagem ao “Centenário do Patrono da Ecologia no Brasil”. Reuniu pessoas que também não têm nenhuma relação com a questão ambiental, que jamais abriram a voz para esse desastre ecológico que é o Espírito Santo. Homenagem espalhafatosa, mas irrelevante, bem ao sabor dos deputados estaduais.
 
Por fim, o inusitado: a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que tanto o combateu por anos e anos, demorou 50 anos para dar um título de Doutor Honoris Causa a Augusto Ruschi.
 

   

 
O exemplo de Ruschi no Espírito Santo é edificante. Dá uma ideia do que são a imprensa local e as elites capixabas, que não viveriam esses os cinquenta anos, uns sem a publicidade das poluidoras, outras sem os financiamentos delas.
 
Ruschi foi tão especial que, quando apareceram os índios querendo cuidar do envenenamento pelo sapo da espécie dendrobata, recebeu aquilo com entusiasmo, expressando que a medicina dos índios era a que ele queria naquela altura da vida. Uma medicina produzida dentro das florestas, que tinha tudo a ver com a vida que tinha levado. Ainda com essas atitudes dele, que chocavam-se com a visão das elites, que são por natureza predadores, ele recusou ser enterrado junto com elas nos cemitérios. 
 
Exigiu que amigos e companheiros o enterrassem na floresta, onde se encontra até hoje: queria também encerrar a vida dele na convivência com os bichos e matas, principalmente os beija-flores, tendo sido enterrado na Estação Biológica de Santa Lúcia, em Santa Teresa, onde seria velado constantemente, segundo as próprias palavras, pelos beija-flores.  
 
Como de praxe, costume e hábito, o Espírito Santo desempenhou irreparavelmente seu papel histórico de ignorar aqueles que de alguma forma desnudam a pequenez de suas elites. Mas e o Ruschi com isso? Sem problemas. Está festejando seu centenário como queria: perto dos beija-flores e longe das nossas elites.

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