Tribunal Popular da Economia do Mar tem encontro regional Sul-Sudeste em Jacaraípe
“Eu costumo sempre dizer que o peixe que eu peguei com meu barquinho de oito metros durante 35 anos, criei meus filhos, formei e dei pós-graduação, uma traineira pega em duas pescarias”. A comparação extraordinária é de Manoel Buenos dos Santos, o Nego da Pesca, liderança da pesca artesanal capixaba, coordenador-geral do Movimentos dos Pescadores e Pescadoras (MPP) e presidente da Associação de Pescadores de Jacaraípe e da Federação das Associações de Pescadores Profissionais e Aquicultores do Estado do Espírito Santo (Fapaes).
“Num cerco que ela faz, ela pega no mínimo 80, 90, 100 toneladas. É isso que não queremos no nosso meio. Ela é utilizada no sul do país, onde o peixe está em extinção, e a gente não quer ela aqui”, afirma.
O alerta de Nego da Pesca é feito em meio à conversa sobre os preparativos para o Encontro Regional Sul/Sudeste do Tribunal Popular da Economia do Mar, que acontece de 18 a 20 de agosto no Espírito Santo, mais precisamente em Jacaraípe, importante balneário pesqueiro na Serra, região metropolitana da Grande Vitória.
“O pescador vê quando a área tá cansada e muda para outra região, deixa repovoar. É a rotina do pescador artesanal. Os índios já pescavam quando os portugueses chegaram. Se dependesse da pesca artesanal, teria ainda muito peixe, com abundância. Mas devido às grandes embarcações [traineiras], com pesca predatória, diminuiu muito nosso estoque”, explica.
A desproporcionalidade entre a pesca artesanal e a pesca industrial das traineiras do sul do país, que avançam para o norte em função do fim dos estoques pesqueiros em sua região de origem, é apenas um aspecto pautado pelo Tribunal Popular. Outros algozes do mar e das populações que dele vivem e o protegem são os grandes empreendimentos portuários, petroleiros e de mineração, de construção de grandes parques de energia eólica e solar, além de aquicultura e biotecnologia – alicerces da chamada Economia Azul, à qual o Tribunal Popular se contrapõe.
Elaborada durante a Rio+20, “a Economia Azul desconsidera os efeitos das mudanças climáticas e em seus megaprojetos não existe lugar para avaliações de impacto ambiental e social para instalação. Os territórios costeiros e marinhos são vulnerabilizados com atividades econômicas de grande porte e de impactos irreparáveis, a exemplo do vazamento de petróleo, mineração de terra que logo rebaixa áreas e causa consequentemente inundações”, expõe a Cartilha de Formação do Tribunal Popular da Economia do Mar, elaborada pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
O Tribunal foi lançado em novembro passado durante o Grito da Pesca Artesanal, com base na experiência do Tribunal da Economia Azul do Oceano Índico, iniciado em 2017 e concluído em 2020, por organizações não governamentais e comunidades tradicionais pesqueiras de cinco países banhados pelo Índico: Bangladesh, Índia, Indonésia, Sri Lanka e Tailândia.
Mineração, petróleo e portos
A articulação brasileira se conecta com a de outros países da América Latina e Caribe. O encontro nacional está programado para 22 de novembro, em Brasília, quando cada região levará um projeto de grande impacto sobre a pesca artesanal. “Nesses três dias em Jacaraípe vamos eleger os projetos que serão levados para Brasília. Mas os outros que forem discutidos não vão cair no esquecimento, depois vamos trabalhar neles também”, informa o coordenador do MPP e presidente da Fapaes.
Um grande candidato a representar o Sudeste é o setor minerário, fortemente representando pela extração de minério de ferro pela Vale em Minas Gerais e transportado até o Espírito Santo, de onde é exportado para as grandes economias mundiais, e que provocou o maior crime ambiental do país e da mineração mundial, que foi o rompimento da Barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP em Mariana/MG em cinco de novembro de 2015.
“A mineração contamina em Minas Gerais, onde faz a extração, depois contamina a nossa região toda aqui no Espírito Santo, no deslocamento e também nos portos, que tiram espaço grande da pesca, e no grande fluxo de navios de mineração que transportam o minério. É um empreendimento que gera outros empreendimentos de grande impacto. Já temos 11 portos no Estado, com projeto para mais 27. Alguns já estão licenciados, e outros já a todo vapor para iniciar as obras, como o Porto Central [em Presidente Kennedy, na divisa com o Rio de Janeiro] e o Petrocity [em São Mateus, norte do Estado]”, descreve Nego da Pesca.
“Semana passada nós fomos na Romaria das Neves, distribuímos mais de dois mil panfletos [sobre os impactos do Porto Central]. Tinha mais de dez mil pessoas, uma quantidade enorme de ônibus de outros estados, pessoas a pé vindo do Rio de Janeiro, pagando penitência. Falamos do impacto ambiental e socioeconômico do Porto. Vai tirar vegetação, vai fazer dragagem e tirar a tradição daquela festa”, relata.
Importância econômica
A pesca artesanal é uma atividade milenar, uma das profissionais mais antigas, caracterizada por uma cultura própria, ancestral, cheia de mística e de fé , que produz expressões culturais próprias e inspira a produção artística na música, no cinema e outros artes clássicas e modernas. Além disso, ressalta Nego, tem uma contribuição socioeconômica muito grande para o país.
“O pescador gera o emprego dele e de mais quatro a cinco pessoas e movimenta a economia: é madeira para a construção das embarcações, é óleo diesel, é material de pesca, é motor, alimentação”, elenca. O cálculo é de que esse setor corresponda a 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo. “Temos 16 mil pescadores e 60 mil famílias vivendo especificamente da pesca”, informa, considerando além da atividade direta da pesca, também o beneficiamento e a comercialização do pescado, a confecção dos materiais de peca, a construção das embarcações. “Precisaria de ser mais valorizada e reconhecida. Mas o governo não quer fazer investimentos em políticas públicas”.
Proteção ambiental
Há ainda o grande trabalho ambiental empreendido pela pesca artesanal. “Temos uma função muito grande de protetor da natureza, fiscais. Nós temos preocupação em preservar essa cultura milenar. Temos muito respeito à natureza porque é dali que tiramos nosso sustento das nossas famílias. Queremos preservar pra nós e futuras gerações”.
Função que colide com os interesses dos grandes empreendimentos da Economia Azul. “Queira ou não, o pescador é uma pedra no sapato desses grandes empreendimentos. Eles cometem os crimes e quer deixar aquilo ali debaixo dos panos. E hoje em dia graças à tecnologia, temos celular, filmamos, gravamos, mandamos para as autoridades e para o mundo. Exemplo da plataforma de São Mateus que pegou fogo [em fevereiro de 2015]. Também aquele petróleo que apareceu na Paraíba o primeiro a divulgar foram os pescadores. Fiscalização nenhuma vai estar em alto mar vendo aquilo, mas nós estamos aqui. Eles têm nós como inimigos, porque quer deixar camuflado, mas nós não deixamos passar em branco”.
Denúncia internacional
A Cartilha preparatória para o Tribunal Popular da Economia do Mar ressalta a organização das “redes de diálogos para a escuta atenta das denúncias das comunidades pesqueiras na América Latina e Caribe”. A intenção é encaminhar denúncia formal das violações de direitos humanos, culturais, ambientais, econômicos e ancestrais dos pescadores artesanais em âmbito internacional na Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
“O Tribunal Popular do Mar também tem como uma das suas intencionalidades políticas articular o diálogo em rede entre as diversas organizações populares de pescadores e pescadoras artesanais da América Latina e Caribe que integram o Fórum Mundial dos Povos Pescadores (WFFP)”, afirma a publicação.