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???O que sempre foi motivo de alegria, virou tristeza???

Fotos_ Leonardo Sá/Porã

 

“Não posso falar desse assunto que eu choro”, avisa Alda Ribeiro Lourenço Ivo, a “Dona Alda”, 67 anos, já com os olhos marejados. Nos últimos 15 dias, é só o que tem feito os moradores da comunidade de Regência, em Linhares (litoral norte do Estado), diante da morte do rio Doce com a chegada da lama de rejeitos da barragem da Samarco/Vale, que atingiu a foz e o oceano nesse final de semana. O clima, que era de velório, se transformou em luto profundo.
 
Primeiro o sentimento de apreensão devido à falta de informações sobre o crime ambiental cometido pela empresa e expectativa de como essa lama de rejeitos chegaria à vila de pescadores. Depois, o choque de se deparar com uma realidade assustadora e cruel. Lugar de contemplação, lazer, identidade e fonte de alimentos para a comunidade humilde que mantém seus costumes tradicionais, a foz do Rio Doce, agora, é só lama. O “tsunami marrom” contrasta com a beleza do lugar, que guarda peculiaridades especiais. 

 

“O que era motivo de alegria, virou tristeza, lamentou “Dona Alda”. Nascida em Regência e presença ativa nas manifestações culturais locais – congo, Clube Carnavalesco Valete de Ouro e “Auto do Caboclo Bernardo”, ela teme o futuro: “Não sei o que será de nós”.
 
“Dona Alda” define o crime ambiental que atingiu Regência como “um tapa de mão fechada” na cara da comunidade. “Não esperava isso, eu me criei aqui, casei, criei filhos, netos, bisnetos…eles tinham prazer de brincar no rio. Tinha o pessoal que tirava seu sustento, o alimento. Agora essa água feia, vermelha”, desabafa com lágrimas escorrendo pelo rosto. 

 

Desde esse sábado (21), dia previsto para a chegada dos rejeitos da Samarco/Vale à foz do rio Doce, a comunidade se dirigia a todo instante ao píer para observar a água. Olhares distantes revelavam tristeza e dor. Era, de fato, uma despedida. 

A lama de rejeitos começou a alterar a paisagem da foz naquela mesma tarde, na boca norte, onde uma linha dividia a antiga água do rio e a indesejável lama. Foi por lá que o rio começou a encontrar o mar primeiro, devido à mudança do vento e das correntes para o lado sul, o que levou a lama para a direção de Povoação e Pontal do Ipiranga. 
 
Durante todo o final de semana, uma fita de isolamento separava o píer em duas áreas. De um lado os moradores aflitos, do outro os funcionários da Samarco/Vale. A decisão da Justiça estadual que obrigou a empresa a garantir o escoamento da onda de lama ao oceano era o que a mineradora precisava para tentar se livrar logo da enxurrada de rejeitos, já que, no mar, a tendência é a lama se dissipar e tornar menos impactante o visual. O mesmo não deve ocorrer, porém, em relação aos impactos decorrentes da sedimentação dos resíduos, que ficarão depositados no fundo do rio e do oceano. 
 
Foi nesse píer onde ocorreu o primeiro ato da comunidade naquele sábado, uma iniciativa do presidente da Associação Comercial de Regência, Messias Caliman, 49. Ele percorreu de barco a foz do rio vestido de morte. Na mão, segurava uma foice com o nome da Samarco. O protesto gerou reações de apoio dos moradores, que dispararam palavras de revolta contra os funcionários da empresa. 
 
Na praça central, outra mobilização. Com cruzes e faixas, os moradores e frequentadores da vila gritavam: “o rio é Doce, a Vale é amarga”. Algumas pessoas deitaram-se no chão, simbolizando a morte do manancial.  
 
 
 “Quantas vidas estão perdidas? O Senhor Jesus deu água boa para nós beber, e não essa água amargosa, barrenta”, gritava Hilda Lourenço Pessanha, 73 anos, uma das mais antigas moradoras de Regência, encerrando sua fala com uma oração.
 
De lá a comunidade seguiu para a praia de Regência, onde máquinas derrubavam a vegetação para a passagem de uma balsa, utilizada para aumentar a vazão do rio ao mar. Na linha da destruição estavam exemplares de guriri e casuarinas, que têm valor simbólico para a vila. Moradores e surfistas intervieram para que houvesse o menor dano possível. De novo, houve quem deitasse no chão. 

 
Em meio ao diálogo com os técnicos responsáveis pelo maquinário, barulhos de sirenes, armas em punho e spray de pimenta. A Polícia Militar, em grande número na vila naquele dia, apareceu com o argumento de se fazer cumprir a decisão judicial. Preferiu a repressão à pacificação. 
 
A área, até então protegida, perdeu boa parte do seu verde. “Não pode entrar com moto, cachorro, e uma draga desta, pode?”, questionou Wagner Lima, o Guima, 38 anos, frequentador antigo de Regência e há três anos morador. “Falta respeito, estão brincando com o sentimento dos outros”.
 
 
Com o cair da noite e a chuva forte, os moradores se recolheram. Logo ao amanhecer, no domingo (22), não havia mais vestígio da antiga cor do rio Doce. A paisagem havia sido completamente tomada pelo marrom. 
 
Se as barreiras de contenção instaladas pela Samarco/Vale não convenceram os moradores nem no dia anterior, neste momento, então, foram consideradas uma afronta e tentativa de enganar a população. Como esperado, a lama ultrapassou toda a extensão do material que, segundo a empresa, é de nove quilômetros. 
 
Mais uma vez, para onde se olhava no píer do rio Doce, incontáveis olhares distantes e de tristeza. 
 
Sentado em um dos bancos, Antonio Ferreira Guimarães, 78, observava a  mudança da foz. “Acabou o rio, acabou a pesca”, sentenciou. Mineiro, ele se mudou para Regência há muitos anos, ao lado da mulher, atraído pela natureza e bucolismo. Não imaginava que um dia iria se deparar com essa cena. “Gostava muito daqui, enterrei minha mulher aqui, agora dessa água, não estou gostando”. 
 
 
O drama da vila que escolheu para viver com a chegada da onda de lama é o mesmo de seus conterrâneos. Antonio é de Governador Valadares, outra cidade arrasada pelos rejeitos da Samarco/Mineração que atingiram uma extensão de 615 quilômetros do rio Doce entre a cidade Mariana, onde rompeu a barragem, até a foz, em Regência. 
 
Também com os olhos voltados para o rio, Guima parecia não acreditar no que via. “Para quem tem uma relação com o rio Doce, não é fácil”, destacou. 
 
Ele lembra que há dias só se fala desse assunto na vila. “Toda hora a gente chora, não dorme mais. O rio Doce não sai da cabeça. Não sabemos ainda o que vai acontecer. A população ribeirinha que depende dessa água, o turismo motivado pelo surfe…ninguém quer vir mais pra cá”, alertou.
 
É para esta questão, agora, que está voltada a Associação Comercial de Regência. As principais atividades econômicas da vila, a pesca e o turismo, estão comprometidas pela onda de rejeitos. “Os prejuízos são incalculáveis. Nas pousadas e campings, as reservas já estão sendo canceladas”, afirmou Messias. 
 
O problema, como pontua, atinge toda a rede do comércio, inclusive os autônomos e prestadores de serviços, que somam pelo menos 40 pessoas . “Tem ainda os agricultores, porque não se sabe o grau de contaminação dessa água, que também é utilizada nas plantações”. 
 
Para exigir reparação da empresa pelo crime que cometeu, a entidade realiza o cadastramento de todas essas pessoas, para formalizar ações coletivas, dividas por áreas: pescadores, comerciantes e agricultores. A comunidade também estuda alternativas para evitar que os turistas se afastem de Regência, com medidas positivas que mostrem outros atrativos da vila. “Precisamos desse apoio”, ressaltou.
 
Há 22 anos Messias escolheu Regência como o local para viver e criar seus filhos. “Ver esse impacto dá vontade de chorar. É uma mistura de desespero, revolta, sentimento de perda e decepção com o poder público”, relatou. 
 
Ele lembra quando, no sábado, ainda vestido de morte, após o ato realizado no rio, se encontrou com uma senhora da vila. “Ela me abraçou e começou a chorar. Aquilo me comoveu muito”. Essa senhora era “Dona Alda”. 
 

Na Casa do Congo de Regência, no domingo (22), “Dona Alda” seguia com sua rotina, ao lado da também congueira Rosa Alves da Silva, 69 anos, que divide com ela o mesmo sentimento. “Está todo mundo com coração na mão”. Rosa, como “Dona Alda”, nasceu e criou a família na vila de pescadores. “É a maior tristeza da minha vida. Quando a gente não tinha nada para comer e o salário não dava para comprar carne, o rio nos fornecia alimento. Agora vai ser só arroz e feijão, mesmo. Não temos ajuda de ninguém”.

 

Como tem ocorrido nas outras cidades atingidas pela onda de lama, em Minas Gerais e no Espírito Santo, a Samarco/Vale, até agora, não ofereceu qualquer assistência para os moradores de Regência. Representantes da empresa só se reuniram com a comunidade na véspera da chegada da lama, mesmo assim, após pressão. Mas não apresentaram nada de concreto, muito menos respostas. 
 
Nesta segunda-feira (23), a Associação de Surf de Regência emitiu um comunicado avisando que está proibido surfar ou mergulhar nas praias do vilarejo, até que o poder público forneça laudos sobre a segurança da qualidade da água e do rio. 
 
“Vamos continuar na luta até que a mineradora se responsabilize pela exterminação causada à humanidade e ao meio ambiente. Sabemos que a Samarco/Vale poderia ter realizado ações muito mais efetivas para conter essa lama tóxica, mas percebemos que esta não é a prioridade da empresa. Quando Vale isso tudo?”, questionou a entidade, em nota. 
 
Sem previsões sobre o futuro da comunidade e desamparados, os moradores de Regência tentam buscam forças para resistir apegando-se à fé. “São Benedito vai fazer Deus limpar essa água e tomar conta da gente”, deseja a ainda esperançosa “Dona Alda”.

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