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‘O que vocês estão fazendo pra isso não acontecer?’, perguntam artesãs

Fotos: Leonardo Sá

Na última reportagem da série Nem Um Poço a Mais, as artesãs Dora e Rose e o casal de pescadores Renta e Carlos contam como o fantasma do progresso predatório típico dos empreendimentos petroleiros e portuários assombra o litoral de Presidente Kennedy. 

A série tem apoio do edital Mais Vida Menos Petróleo, da Campanha Nem Um Poço a Mais, empenhada por diversas organizações brasileiras representantes de comunidades impactadas pela indústria do petróleo e pelos portos a ela associada, além da Federação dos Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase). 

O projeto percorreu cinco municípios capixabas, colhendo relatos e impressões sobre os impactos que a extração do petróleo já provocou em comunidades pesqueiras e quilombolas do norte do Espírito Santo e também no sul do Estado, onde navios-plataforma em alto-mar já reduziram a potência da pesca artesanal, situação que tende a se agravar com a chegada do Porto Central, que tem obras previstas para começar no segundo semestre de 2020. 

“Não tem como evitar”

No pacato balneário de Marobá, em Presidente Kennedy, Maria Auxiliadora Souza Araújo, a Dora, coordena a Associação de Artesãs de Marobá (Marobart), onde as artesãs confeccionam peças a partir de produtos do mar, como escamas de peixe, muito bem recebidas e premiadas em feiras estaduais e nacionais e procuradas por empresas públicas e privadas diversas, como lembranças distribuídas em eventos institucionais e datas comemorativas.

Ela observa a presença de “pessoas diferentes” que já começam a se instalar no bairro, atraídas pelas já conhecidas promessas de emprego e desenvolvimento emanadas do Porto Central. “Isso não tem como evitar”, conforma-se. “Já lutamos muito, tentamos de todas as formas, mas não adianta. A gente nem sabe de onde vem tanta gente, como entram aqui. Vamos ter que conviver com isso. Já tem bastante gente diferente aqui, de outros estados. Nesse verão, vai chegar mais e muitos vão ficar, aguardando o porto. Já aumentou o consumo e o tráfico de drogas”, depõe. 

Na sua peregrinação, de reunião em reunião, em favor da comunidade, Dora recorda um episódio, ocorrido em uma audiência pública, quando o secretário municipal de cultura, turismo, esporte e lazer, Zenilton Rosa Porto, afirmou que o Porto Central não provocaria impacto negativo sobre a pesca. Inconformada com a irresponsabilidade da declaração, Dora pediu a palavra: “Na minha opinião, quem deve mostrar se vai haver impacto ou não é o pescador, e não um secretário sentado numa sala com ar condicionado”, disparou, recebendo flashes fotográficos como resposta. “A gente fica até com vergonha”, confidenciou, referindo-se à exposição que a luta lhe rendeu, até hoje. Mas ela segue em frente. 

“Não sei nada de condicionante ambiental aprovada até agora. A gente foi na audiência, mas está tudo na prefeitura”, reclama, ao responder sobre quais condicionantes ambientais a comunidade tem consciência que foram aprovadas no licenciamento. 

O processo, aliás, corre na Diretoria de Licenciamento Ambiental (Dilic) do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em Brasília, que concedeu a licença de operação em março de 2018, após mais de cinco anos de muita polêmica, incluindo estudos questionados pelo órgão ambiental, que, em parecer técnico, chegou a apresentar mais de 40 pedidos de revisão e esclarecimentos aos responsáveis pelo empreendimento. 

Conforme já publicado neste Século Diário há dois anos, um documento do Ibama de julho de 2014 contém uma alegação dos técnicos sobre a ausência de argumentos fundamentados para a avaliação adequada sobre a viabilidade ambiental do empreendimento. Além dos aspectos ambientais, o relatório também destacou pontos referentes às populações tradicionais e na área social. No entanto, a licença foi concedida pouco mais de cinco meses depois.

Dora afirma que, tendo aceito o inevitável inchaço do lugar – “terrenos começaram a ficar muito caros” e “os galpões já foram instalados na rua principal de Praia das Neves” – o que ela espera é o “desenvolvimento da comunidade”. “Precisamos urgentemente de uma escola técnica”, suplica, pensando nos trabalhadores que precisam receber qualificação específica para conseguir vagas de emprego no Porto Central. Por enquanto, Marobá conta apenas com uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) que oferece do primeiro ao quarto ano. 

Sobre as obras nas ruas, falta ainda refazer os calçamentos sobre a nova rede de água e esgoto. “Como vamos receber os turistas com tanta poeira nesse verão?”, preocupa-se. 

Condomínio portuário

De fato, o município está literalmente em obras há mais de um ano, recebendo investimentos em saneamento básico, pavimentação, saúde e educação – exigência do empreendedor para iniciar a construção do megaporto. 

O Porto Central será um porto que servirá grandes empresas dos setores de petróleo e gás, mineração, agrícola, de apoio à indústria offshore, assim como estaleiro e terminal de contêiner e carga geral que movimentarão cargas diversas como veículos, produtos siderúrgicos, coque de petróleo para cimenteiras, soja e fertilizantes, carvão, GNL, rochas ornamentais, etc..

O porto está sendo desenvolvido no modelo de condomínio portuário, no qual os empreendedores serão responsáveis pela infraestrutura portuária, terrestre e de utilidades (tais como dragagem, quebra-mar, cais e píeres e vias de acesso) e os clientes do Porto Central arrendam áreas para a implantação de suas respectivas indústrias e/ou terminais. Esse modelo reduz o investimento global e os custos operacionais para os nossos clientes, permitindo que os clientes dediquem os seus recursos às suas atividades fins.

No último dia 21 de maio de 2019, o Governo do Estado do Espírito Santo, por meio da Secretaria de Desenvolvimento, promoveu o Workshop “Espírito Santo: um bom lugar para viver e investir em petróleo e gás”, destinado a empresários e investidores do segmento, no Hotel Sofitel Ipanema no Rio de Janeiro, e contou com o apoio da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), por meio do Fórum Capixaba de Petróleo e Gás, e do Porto Central, e a participação de 120 empresários de diversas nacionalidades.

Pesca invisível

Enquanto isso, em Kennedy, a Associação de Pescadores de Marobá acumula perdas. Inaceitáveis perdas. Como a incrível dificuldade em conseguir inserir, no Plano Diretor Municipal (PDM), a pesca artesanal como uma das atividades econômicas relevantes. 

O casal Renata e Carlos, à frente da entidade, testemunham: “não tem condicionantes da Petrobras aqui. As associações tem que brigar entre si pelo dinheiro que vem de condicionante”, indignam-se. Os cerca de 230 pescadores associados tem sido bombardeados com anúncios de bons salários em empregos no petróleo, promessa que não convencem os dois. “O pessoal aqui não tem escolaridade pros empregos que vão vir”, constata Carlos. 

A artesã Rosângela Maria Silva Rocha, a Rose, colega de Dora na Marobart (na foto abaixo, as duas juntas na Praia das Neves), também é pescadora. “Vou no alto-mar de remo”, conta, orgulhosa. E compartilha do mesmo ceticismo.  Por conhecer a história de Macaé e Campos, sabe que a pesca em Kennedy pode sofrer o mesmo revés. Não só a pesca, mas a comunidade como um todo. 

“Concordo que precisamos de vprogresso, de emprego, escola. Mas não concordo que isso virá através do porto. O que ele vai trazer são mais drogas, ladrões, doenças, prostituição”, diz. “Eu só quero entender”, suplica, direcionando seu clamor aos empresários e gestores públicos, tão entusiasmados com mais uma versão da velha tragédia petroleira, tantas vezes encenada no Espírito Santo, no Brasil, no mundo inteiro: “:  o  que vocês estão fazendo pra isso não acontecer?”.

 

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