A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Espírito Santo (OAB-ES) realiza, na próxima quinta-feira (24), audiência pública sobre o Projeto de Lei (PL) nº 3261/2019, que propõe um Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico. O Projeto de Lei já foi aprovado a toque de caixa no Senado e está na Câmara, em análise por uma comissão especial presidida pelo capixaba Evair de Melo (PP).
O debate acontece no auditório da OAB, Centro de Vitória, e contará com apresentação de representantes da Ordem capixaba e nacional e das mais importantes entidades federais do setor, todas contrárias ao PL, bem como prefeitos e governadores de vários estados.
Um dos palestrantes, Fábio Giori, representante do Espírito Santo na Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), afirma que a mobilização nacional precisa se intensificar, pois o PL traz riscos de graves retrocessos no país e no Estado.
“No caso do Espírito Santo, o que está em jogo é a manutenção ou a extinção da Cesan [Companhia Espírito Santense de Saneamento] e dos SAAEs [Serviços Autônomos de Água e Esgoto]”, alerta. Se aprovadas da forma como estão no relatório do deputado Geninho Zuliani (DEM/SP), afirma Fabio Giori, as novas regras tendem a provocar a privatização generalizada dos serviços públicos de saneamento.
E, com a privatização, virá o sucateamento do setor, o aumento de tarifas, a piora dos serviços e o não cumprimento da meta federal de universalização, pois os municípios e localidades mais distantes dos grandes centros urbanos ficarão de fora dos contratos de interesse das empresas privadas, por não gerarem lucro.
“A iniciativa privada só coloca dinheiro onde tem retorno líquido e certo, ou seja, não vai investir onde tem inadimplência e, muito menos pouca gente, ou seja, nas localidades do interior e naquelas localidades onde a concentração de pessoas é pequena. E isso a gente não fala por achismo, existem exemplos claríssimo disso em todo mundo”, explica, destacando a Alemanha, os Estados Unidos, a Argentina e França, este, o mais emblemático.
“A França detém as maiores empresas privadas de saneamento do mundo. No entanto, Paris rompeu contrato com a empresa privada e voltou a prestar o serviço público de saneamento”, conta. No Brasil, dois casos que ilustram o alerta das entidades contra o PL do Novo Marco Regulatório são Tocantins e Manaus/AM.
No Tocantins, o contrato celebrado entre a Odebrecht e o governo estadual previa que a empresa privada só prestaria serviço nos municípios com maior concentração de pessoas, deixando os municípios pequenos e as localidades mais distantes e com menor densidade demográfica para o poder público. “Para a iniciativa privada o filé e para o serviço público, o osso”, ironiza. Já em Manaus, após 20 anos de privatização, os índices de saneamento continuam vergonhosos, tanto na cobertura de água quanto na coleta e tratamento de esgoto, informa.
Propostas
Ao contrário de um novo marco regulatório, as entidades contrárias ao PL 3261/2019 em tramitação propõem a modernização não da Lei, em si, pois a atual Lei de Diretrizes Nacionais de Saneamento foi aprovada em 2007 “e tem produzido resultados positivos para a sociedade”, avalia o secretário da FNU.
“O que seria importante modernizar são os instrumentos de participação e controle social”, indica. Um deles é o estabelecimento de regras mais claras nos chamados contratos de programa, para que as companhias cumpram com a obrigação da busca permanente pela universalização do serviço.
As agências reguladoras também precisam ser aprimoradas, para que de fato possam de forma independente fiscalizar a prestação de serviço. Os conselhos de políticas públicas ligadas ao saneamento precisam ser melhorados, com composição tripartite e garantia da paridade entre representantes do poder público e da sociedade civil organizada, e precisam ser deliberativos, para que tenham o poder de definir políticas públicas de acordo com a realidade local e o interesse da população. Fundamental também é desburocratizar o setor e facilitar o acesso das empresas públicas a recursos públicos de saneamento e criar um fundo de universalização do saneamento.
O Plano Nacional de Saneamento Básico prevê a universalização dos serviços até 2033 e para isso são necessários investimentos na ordem de R$ 25 bi por ano. Atualmente, somente são investidos aproximadamente R$ 12 bilhões, menos da metade do necessário, pois o governo só investe 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Saneamento.
“É necessário dobrar essa meta, até porque, estudos apontam que cada um real investido em saneamento gera uma economia de quatro reais em saúde, além de fomentar o turismo, a industrialização e diversos outros serviços que enriquecem as nossas cidades e melhoram a qualidade de vida”, argumenta.
Essa necessidade de investimento tem deixado até algumas empresas privadas contra o PL, pois o governo anunciou que elas serão obrigadas a investir R$ 700 bilhões até 2033, pra alcançar a universalização dos serviços. “Estou confiante que iremos conseguir barrar esse PL”, declara Giori.
Duas vitórias
As entidades já conseguiram barrar o novo marco regulatório por duas vezes, quando ele foi proposto pelo presidente Michel Temer por meio de duas Medidas Provisórias (MPs) idênticas, que caducaram, devido à pressão popular pela não votação.
No dia seguinte ao vencimento do prazo da segunda MP, no entanto, dois PLs foram propostos no Congresso, um pelo senador Tasso Jereissati (PSDB/CE) e outro pelo deputado capixaba Evair de Melo. Ambos, plagiando as duas MPs caducas. Tasso conseguiu aprovar em tempo recorde e mandar para a Câmara. O presidente da comissão é Evair de Melo e o relator é o deputado Geninho Zuliani. O Geninho já apresentou seu relatório e o mesmo deve ser votado em breve, provavelmente a semana que vem.
“O relatório, que também é chamado de substitutivo porque substitui o texto original da lei, consegue ser pior que a lei apresentada no Senado porque diminuiu prazos e criar metas mais rígidas para a manutenção dos contratos de programa já existentes”, expõe o urbanitário.
Contratos de programa
Um ponto-chave do PL 3261/2019, que objetiva inviabilizar a atuação das companhias estaduais e SAAEs, é o fim dos contratos de programas que atualmente são celebrados entre os municípios e as companhias estaduais de saneamento. “Tanto a Constituição quanto a lei de licitações tem previsão de dispensa de licitação para que o município celebra um contrato de programa com a Companhia Estadual”, sublinha Fabio Giori.
No entanto, para a celebração do contrato de programa, é necessário a realização de audiências públicas, elaboração de um contrato metas de investimentos a serem feitos e aprovação do mesmo pela câmara de vereadores, o que “garante a participação e o controle social, além da fiscalização pelo poder legislativo municipal”, defende.
O fim dos contratos de programa vai forçar as companhias estaduais a disputarem licitação com empresas privadas, condição que “praticamente inviabiliza a participação do setor público na prestação dos serviços de saneamento”.
O motivo é que a empresa pública compra por licitação contrata por concurso público e está sujeita a toda sorte de fiscalização por diversos órgãos de controle, como Ministério Público, Tribunal de Contas e agência reguladora. Ao passo que a iniciativa privada disputa com regras de mercado, com condições mais flexíveis de contratação e demissão e de compra e venda, além de não estar sujeita à fiscalização e ter facilidade no acesso a financiamentos públicos.
“É preciso desburocratizar o acesso das empresas públicas aos recursos públicos para poder fazer investimento em saneamento porque hoje essa regra é muito desigual”, aponta. Mesmo assim, ressalva, as companhias públicas foram responsáveis por 80% de tudo que foi investido em saneamento desde 2003, algo em torno de 55 bilhões.
“O fim dos contratos de programa ainda fere de morte a política de subsídio cruzado que hoje é praticada pelas companhias estaduais de saneamento”, acrescenta Giori. Com o subsídio cruzado, as companhias estaduais usam recursos dos municípios superavitários para garantir a prestação dos serviços de saneamento dos municípios deficitários. Sem ele, as localidades mais periféricas ficarão abandonas.
“Tudo isso porque a empresa pública não visa lucro. O objetivo primeiro da empresa pública de saneamento é garantir a universalização do serviço e garantir a prestação de um serviço público de qualidade com tarifa justa e acessível à população. Isso é o que diferencia o serviço público do serviço privado”, enfatiza.
Iniciativa privada no ES
O Estado tem três experiências de iniciativa privada no saneamento: Cachoeiro de Itapemirim, Serra e Vila Velha, sendo essas duas últimas por meio da Aegea, que atua sozinha em Vila Velha e de forma majoritária na Serra.
Audiência
Os palestrantes na audiência pública do dia 24 em Vitória serão: Luiz Henrique Antunes Alochio (OAB/ES), Leandro Mello Frota (OAB Federal), Francisco Lopes (Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento – Assemae), Percy Soares Neto (Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto – ABCON), Edson Carlos (Instituto Trata Brasil), Fábio Giori (Federação Nacional dos Urbanitários – FNU) e Marcus Neves (Associação Brasileira das Empresas de Saneamento Básico – Aesbe).