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Os primórdios da violência da Aracruz Celulose contra indígenas e quilombolas

Agência Pública aborda estudo da Unifesp sobre aquisições de terras, prisões, “semi-servidão” e subsídios fiscais

Prisões arbitrárias, trabalhadores em situação de “semi-servidão”, ameaças e expulsões executadas por seguranças armados, tudo com a cumplicidade dos governos durante a Ditadura Militar. O objetivo: apropriação dos territórios tradicionais de indígenas e quilombolas do norte do Espírito Santo para instalação da estrutura industrial e monocultivos de eucaliptos da Aracruz Celulose, a partir da década de 1960.

O trágico enredo é revelado na reportagem Aracruz Celulose teria usado prisões arbitrárias para obter terras indígenas na ditadura publicada pela Agência Pública, como parte da série especial “Empresas cúmplices da ditadura”.

Assinada pelo repórter Dyepeson Martins, a reportagem se baseia em entrevistas e dados levantados pelo projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, que reuniu 55 pesquisadores, sob a condução da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), através do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).

O estudo aponta que mais de 30 aldeias teriam desaparecido após a instalação da empresa no Espírito Santo, em 1967, e que cerca de 10 mil famílias quilombolas teriam sido expulsas do Território Tradicional do Sapê do Norte, entre São Mateus e Conceição da Barra.

A reportagem inicia descrevendo a atuação dos seguranças nos territórios. “Armados, com revólveres à mostra e caminhando como se fossem xerifes. Em Aracruz, no Espírito Santo, essas cenas foram protagonizadas por um grupo de segurança que teria ligação com a Aracruz Celulose — multinacional produtora de celulose e eucalipto”.

Os documentos apontam que a própria Fundação Nacional do Índio (Funai), na época sob gestão do regime militar, “teria ajudado nos atos de repressão, ao participar da prisão de indígenas levados compulsoriamente à Fazenda Guarani — um centro de detenção usado em substituição ao Reformatório Krenak, em Resplendor (MG)”. Do Espírito Santo, em 1972, segundo relatório da Unifesp, “pelo menos 30 Guarani e 11 Tupinikim foram levados pela Funai de Aracruz até a prisão”. No local, acrescenta, funciona um cemitério improvisado, onde os indígenas eram enterrados. 

Arquivo SD

A estratégia de tomada dos territórios indígenas e quilombolas envolvia ainda os governos locais, principalmente entre os anos 1970 e 1980, que se aproveitavam da dificuldade das comunidades em comprovarem documentalmente suas propriedades. “As terras eram consideradas devolutas, passavam a ser requisitadas pelo poder público, e posteriormente eram repassadas à empresa”. Repassadas, ressalta o texto, significa “entregues”, “doadas”.

No processo de retirada dos moradores para declarar as terras como devolutas, o repórter cita depoimento prestado por um representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Aracruz, instalada em 2002 pela Assembleia Legislativa do Espírito Santo, dando conta de ameaças e coações executadas por um major reformado da Polícia Militar e outros agentes. “Aqueles que resistiam e não queriam vender as suas terras eram pressionados”, disse o representante do Cimi.

Fraudes sobre terras devolutas

A reportagem elenca ainda outros elementos dessa violência empresarial, com anuência institucional, nos primórdios da relação da Aracruz Celulose com o Espírito Santo. Um deles é o desrespeito explícito à Lei Estadual nº 16/1967, no tocante à regra de que era preciso ser morador há no mínimo três anos para tê-la regularizada e que somente poderiam comprar terras do Estado quem fosse “possuidor de propriedade insuficiente para o sustento próprio e de sua família”.

Duas regras da lei então vigente que foram sistematicamente burladas pela Aracruz Celulose. A CPI listou 34 funcionários que conseguiam legitimar ou comprar terras e as transferiam para a empresa rapidamente, havendo casos em que a transferência era feita no mesmo dia.

Outro aspecto da violência empresarial destacado é a forma como indígenas e quilombolas eram explorados como trabalhadores nos plantios, sendo submetidos a uma situação de “semi-servidão”, conforme descreveu um médico do posto de saúde de Aracruz em um relatório da Funai de 1975.

Sobre os quilombolas, documentos obtidos pela Unifesp mostram a ausência de vínculos formais de trabalho e sequer remuneração financeira! “Os pagamentos teriam se resumido a resíduos de eucalipto usados para a produção de carvão”, destaca a Agência Pública, citando uma atividade que ainda hoje é realizada pelas comunidades remanescente no Sapê do Norte, mas que seguiu sendo continuamente criminalizada pela Fibria e pela Suzano.

Os abusos também foram cometidos contra trabalhadores de hierarquia mais elevada, como os que foram alojados no bairro Coqueiral de Aracruz, criado em 1995 para abrigar os especialistas na produção da pasta de celulose branqueada e que eram monitorados constantemente, inclusive o conteúdo transmitido pela rede interna de TV, já que não havia sinal aberto.

“O monitoramento também era ligado ao Estado. Alguns registros demonstram proximidade entre a empresa e o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) — órgão de inteligência do regime militar — no compartilhamento de informações sobre grevistas. Num dos episódios, em 1979, há um relatório do DOPS informando ter recebido ordem para ir ao local onde operários se manifestavam e lá os agentes teriam recebido a ficha funcional dos trabalhadores após o contato com o assessor jurídico, o chefe de segurança pessoal e de pessoal da Aracruz”, destaca a reportagem.

BNDES

Uma parte específica do texto é dedicada a mencionar os benefícios fiscais que a empresa recebeu, desde sua gênese, principalmente por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que até 1982 não tinha a palavra Social em seu nome.

“O relatório da Unifesp traz evidências de que o banco foi responsável por 55% do investimento total da empresa — entre 1967 e 1975”, época em que ela tinha, entre seus acionistas, Antônio Dias Leite Jr e Eliezer Batista.

“O primeiro fez parte do Grupo de Estudos e Doutrina do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), instituição que esteve entre os financiadores do golpe que destituiu João Goulart da Presidência da República, em março de 1964, [e que] financiou parlamentares e opositores ao então governo em campanhas contra o mito comunista no Brasil. Leite Jr foi Ministro de Minas e Energia no governo militar entre 1969 a 1974”, descreve.

“Já Eliezer Batista, pai do empresário Eike Batista, foi presidente da Vale do Rio Doce de 1961 a 1964 e entre 1979 e 1986. Em entrevista ao Museu da Pessoa, em 2003, ele contou que, junto a Leite Jr, eles atuaram na lei 5.106 de 1966, que regulou os incentivos fiscais concedidos a empreendimentos florestais e, consequentemente, facilitou a ampliação do projeto Aracruz”.

Finalmente, acrescenta, “durante os financiamentos, a Aracruz, segundo os pesquisadores, teve condições excepcionais de investimentos para a época, a exemplo do abatimento do imposto de renda de qualquer excesso eventual”.

Leia a matéria na íntegra aqui

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