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Paulo Vinha presente, também, no parque de Jacarenema

Às vésperas do início das obras, relatos dos protetores históricos de Jacarenema mostram como o amor venceu o medo

Reprodução

“Jacarenema é um sonho de muitas gerações que passaram, a gente acabou perdendo Paulo Vinha…e hoje estou aqui olhando esse parque e vendo que valeu a pena”. A frase é de Nelson Novaes Siqueira, o Abelhão, um dos históricos protetores da natureza na região de Jacarenema e indica a carga de amor e coragem que sustentaram a luta abnegada a que se lançaram, por décadas, ele e muitos outros ambientalistas, movidos pelo ideal de proteger esse verdadeiro tesouro natural, em honra ao legado de Paulo Vinha.

“Várias vezes eu fui ameaçada de morte, de receber bilhetes debaixo da minha porta, que era para eu parar de mexer com o parque de Jacarenema”, relata Maria do Carmo Novaes, a Carminha, outra heroína histórica dessa luta. À frente da Secretaria de Governo da gestão do atual prefeito, Arnaldinho Borgo (Podemos), Carminha trouxe a expertise acumulada como sociedade civil organizada para dentro do poder público e tem capitaneado os esforços para retirar o Parque Natural Municipal de Jacarenema do papel.

No evento de autorização para o início das obras de implementação da unidade de conservação, dia 16 de setembro, esses e outros heróis se fizeram presentes, celebrando uma vida de dedicação a um sonho que sobreviveu ao assassinato do biólogo e ambientalista Paulo Vinha, em 1997. A intenção de nenhum deles era se tornar outro mártir da proteção ambiental no Espírito Santo, mas as ameaças nunca arrefeceram a luta.

Antônio Oliveira/PMVV

“Esse evento marca uma luta muito grande da Carminha nesse processo. Começou com Dona Bárbara, Cesar Musso, eu e uma porrada de gente, e nos últimos anos, a Carminha tem sido a baluarte dessa luta”, declarou, na ocasião, Eduardo Pignaton, o Dunga, membro da Associação Barrense de Canoagem (ABC) e do conselho do Parque de Jacarenema.

“A luta popular permitiu a Jacarenema resistir a incêndios criminosos, pressões imobiliárias e desinteresse do poder público. O Parque é uma vitória de todos!”, concordou Claudio Vereza, ex-deputado estadual pelo PT e autor do projeto que resultou na Lei Estadual 5.427/97, promulgada pelo então governador Vitor Buaiz (PT), criando a Reserva Ecológica Estadual de Jacarenema. O Parque Natural Municipal seria criado seis anos depois, em 2003, e aguardou 20 anos para ser finalmente implementado.

A promotora de Justiça de Meio Ambiente e Urbanismo de Vila Velha, Nícia Regina Sampaio, fez coro aos agradecimentos ao grupo. “É difícil falar do Parque Municipal de Jacarenema sem falar de algumas pessoas. Antes de falar dessa natureza que nos abraça, eu tenho que registrar algumas pessoas que passaram por essa história, principalmente os representantes do Conselho de Jacarenema. Na figura da Maria do Carmo, hoje secretária de Governo, eu gostaria de homenagear esses conselheiros que assumem de forma dativa, sem receber nenhum tostão, pelo amor ao meio ambiente, assumem esse lugar para fazer esse contraponto e mostrar para a sociedade o quanto a gente tem a ganhar com a proteção do meio ambiente”.

A promotora Nícia é quem tem assumido a parte que cabe ao Ministério Público (MPES) na luta jurídica travada de forma acirrada há mais de uma década, para a dirimir os conflitos referentes a indenizações e compensações ambientais nos terrenos privados que integram a área do parque. Foi esse braço jurídico da luta iniciada em campo pelos ambientalistas da região que proveu os recursos, cerca de R$ 1,4 milhão, para as obras, que devem ser iniciadas nos próximos dias, já nesse início de primavera de 2023.

O projeto prevê Centro de Educação Ambiental, Posto de Fiscalização, Espaços para Oficinas Educacionais e Espaço Administrativo, além de banheiros acessíveis, bebedores e um memorial que contará a história da luta pela implementação do Parque. O MPES também estabeleceu regras de uso do solo rígidas, que prometem ser fiscalizadas com pela prefeitura, nos 346 hectares protegidos pela unidade de conservação.

Reprodução

 “Tem um professor, Paulo Saldiva, que diz que todas as crianças que têm a oportunidade de ter uma convivência com a natureza, têm uma melhor capacidade de desenvolvimento intelectual, da saúde física e mental. Então quanto mais nós conseguirmos colocar dentro da cidade marrom a cidade verde, melhor vai ser para as futuras gerações. E o mais importante que a sociedade precisa saber: de todos os direitos, esse é um que vai perpassar gerações. Não é um direito meu, é de todos nós e até de quem nunca vai vir aqui, porque os bens ambientais vão trazer benefícios para toda a sociedade, não tem limite”, complementou a promotora de Justiça.

(Sem) medo de morrer

O trabalho sincronizado de Carminha e Nícia, nos bastidores burocráticos da luta, foi intenso e causou estranheza não vê-la mais à frente de manifestações públicas e falas nos meios de comunicação, dada a opção por não se expor e preservar o sigilo da complexa atuação nas batalhas judiciais e administrativas. “Eu confidenciei para a doutora Nícia, que eu não consegui dormir a noite passada porque eu tinha medo de morrer e não amanhecer hoje para ver isso aqui. Eu queria que o dia amanhecesse para ver isso acontecer”, disse Carminha, emocionada, no evento do dia 16.

Na solenidade, a secretária de Governo abordou esse e outros momentos difíceis. “A gente era chamado de louco, tinha que entrar na frente de trator, de máquinas, tinha que correr para apagar os incêndios. Cada vez que tinha uma vitória, no outro dia a gente sentava e falava: ‘amanhã vem fogo’, e incendiavam. Diversas vezes, fomos deixados de lado dentro do poder público. Fizeram hora com a gente, mentiram. Nos chamaram de xiitas, de loucos. Isso foi difícil”.

O medo de morrer andou ao lado dos sacrifícios pessoais e familiares. “Eu agradeço antes de tudo às minhas filhas, porque eu renunciei a minha vida inteira para correr atrás da defesa do parque, deixando minhas filhas…não sei nem com quem elas ficavam, como elas comiam, como elas passavam… Eu só chegava no final do dia. Mas elas estão aqui, a educação que a gente deu, eu sei que elas entenderam. Hoje o meu agradecimento eu faço principalmente a Deus e a Nossa Senhora, que eu tenho muita fé. E queria oferecer toda essa luta que eu tive para as minhas filhas, agora entregando o parque para elas”.

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Depois de tirar lágrimas dos presentes, Carminha também provocou risadas, ao contar os bastidores da relação com outros setores da prefeitura. “Quando a gente iniciou a gestão [após a eleição de Arnaldinho], até antes, fazendo as reuniões, definindo o plano de governo, uma das coisas que eu coloquei quando o Ricardo [Klippel Borgo] foi indicado para ser o secretário, eu falei com o prefeito: ele pode ser o secretário, mas ele não mexe em Jacarenema, quem vai cuidar sou eu. E isso me foi entregue. Hoje tudo que é relacionado a Jacarenema é tratado na Secretaria de Governo, junto com o Meio Ambiente”.

A parte fácil de relatar da luta, emendou, é da relação direta com a natureza sagrada de Jacarenema. “É fácil falar de Jacarenema quando a gente entende a importância desse ecossistema aqui na nossa volta, um dos últimos remanescentes de restinga que restou no nosso município. A minha relação com esse parque aqui é muito superior, é uma relação com Deus, presente, na minha vida o tempo todo, que me protegeu”, disse.

‘Amantes de Jacarenema’

Abelhão também lembrou as hostilizações. “Nós fomos chamados de doidos na época, fomos ameaçados, passamos por situações que é difícil falar. Uma espera de mais de 40 anos para proteger o que sobrou de Vila Velha, o pulmão do município. Foi uma luta árdua, paramos várias vezes a rodovia, fizemos vários manifestos. Tenho o corpo todo marcado de apagar incêndio dentro de Jacarenema. O Corpo de Bombeiros sempre falando que a gente é que chegava primeiro. Aqui, no Morro da Concha, do lado de lá também, na beira-mar”.

Mas a certeza de seguir, afirma, nunca foi abalada. “Nós dissemos para nós mesmos: ‘vamos encampar essa luta até a nossa morte’. Foi isso o que o grupo falou. ‘É isso? É! Então nós vamos até a nossa morte lutar por Jacarenema’. E a gente continuou essa luta e hoje vejo esse movimento para a criação da sede do parque, e vou dizer para vocês: estou vivo e tem muita luta ambiental pela frente. A questão não só de Jacarenema, como no município de Vila Velha. Para aqueles que não acreditavam, que chamavam a gente de doido, eu digo: a gente não é doido, a gente é amante de Jacarenema, sabe da importância. Eu estou vivo para dizer que valeu a pena e que a gente vai continuar a luta, não vai parar, vamos concretizar nosso sonho”.

Obras

A Secretaria Municipal de Obras finaliza o cercamento das áreas onde serão construídas as estruturas de educação ambiental, lazer e fiscalização, e as obras devem começar nos próximos dias. Quando concluídas, a intenção é transformar Jacarenema em uma grande “sala de aula ao ar livre”, onde moradores, turistas e estudantes poderão conhecer a beleza e a riqueza desse ecossistema, colaborando assim, naturalmente, para sua proteção,f para a atual e as futuras gerações.

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