Prefeitura de Vila Velha posterga cumprimento de decisão judicial, prejudicando a comunidade
Pescadores da Barra do Jucu, em Vila Velha, cobram que a prefeitura cumpra decisão judicial que já transitou em julgado e reconstrua os barracões onde guardavam seus equipamentos. Os módulos de pesca foram retirados em 2007 da Praia da Concha, para serem instalados em uma área resignada no Parque Natural Municipal de Jacaranema, conforme recomendação, na época, do Ministério Público Federal no Estado (MPF-ES), que reconheceu as ocupações como “certamente tradicionais”, mas apontou a necessidade de adequação às normas ambientais.
O juiz Ubiratan Almeida Azevedo apontou, em 2022, que a prefeitura não tomou as devidas providências para assegurar o direito à continuidade das práticas tradicionais da comunidade pesqueira tanto no Morro da Concha quanto na Praia da Concha, como determinava o plano de manejo da unidade de conservação. Essa região é reconhecida como uma zona de interesse histórico e cultural, devido à ocupação que a população local mantém há gerações.
Diante da situação de vulnerabilidade socioeconômica e cultural provocada pela remoção dos barracões, o Ministério Público Estadual (MPES) apresentou uma ação civil pública, na qual argumenta que mudanças realizadas pela prefeitura não incluíram a adoção de medidas para preservar a longa tradição de ocupação e prática pesqueira da população local.
O magistrado concluiu pela omissão da prefeitura em implementar a medida e a condenou a reconstruir os módulos de pesca. O prazo estabelecido foi de um ano para a comprovação da implementação efetiva das ações necessárias, contados a partir do trânsito em julgado da decisão, que venceu no dia 16 de agosto deste ano. Além disso, foi estipulada uma multa diária de R$ 5 mil em caso de descumprimento, podendo atingir o teto de R$ 500 mil.
Segundo o pescador Marcelo Farich, a falta de um espaço adequado para guardar os equipamentos afeta diretamente o trabalho da comunidade pesqueira da Barra do Jucu. Após a remoção dos barracões, ele relata que os pescadores artesanais tiveram que guardá-los em suas casas, distantes da área que utilizam na Praia da Concha. “Aqui onde a gente trabalha, temos que subir o morro, e não pode deixar nossas coisas na praia de qualquer maneira. Precisamos ter um lugar separado para isso”, explicou.
Marcelo, que vem de uma família que vive da pesca artesanal na Praia da Concha, conta que a área para a reconstrução dos módulos foi definida e comunicada ao Ministério Público. Ele critica a falta de compromisso da prefeitura com a comunidade, e lamenta que a nova geração já não demonstra o mesmo interesse pela pesca artesanal. “Praticamente nasci nesse ambiente. Desde pequeno, sempre estive envolvido com a pesca. A nossa geração de hoje não quer mais isso, e se a prefeitura não preservar essa tradição, fica ainda mais difícil”, afirmou.
Identidade cultural
Com uma história que remonta ao período colonial, os pescadores artesanais da Praia da Concha enfrentam desafios que ameaçam sua forma de vida e seus direitos territoriais, agravados pela remoção dos antigos barracões de pesca, o que intensificou a luta pela garantia do sustento de famílias que dependem da atividade e pela preservação de tradições que constituem o patrimônio cultural da região. A comunidade pesqueira está presente na região desde o século XVIII, com registros de suas atividades de pesca sendo documentados já em 1775, conforme apontado em registros do Convento da Penha.
A tradição de pesca artesanal, que é parte fundamental da identidade cultural e econômica da comunidade, tem sido reconhecida em legislações como o Decreto Federal 6.040/07, que assegura o direito dos povos e comunidades tradicionais a seus territórios e ao acesso aos recursos naturais.
O antropólogo Márcio Filgueiras, que pesquisou a história dos pescadores, reforçou que a remoção dos barracões em 2007 representou uma violação de direitos humanos e prejudicou a soberania alimentar da população local. Ele destaca que a manutenção dos espaços coletivos para os pescadores guardarem seus equipamentos é fundamental para preservar as tradições culturais da comunidade.
“Na Barra do Jucu, a gente costuma dizer que o congo alimenta o espírito e a pesca alimenta a barriga. Uma comunidade não pode passar sem uma coisa nem outra. Nesse caso, as formas de apropriação dos espaços naturais e dos espaços de uso comum pela comunidade é o que marca justamente seu vínculo com o lugar onde vive”, relata.
Márcio Figueiras ressalta que a pesca na Praia da Concha não é apenas uma atividade econômica, mas também uma expressão da identidade social local, marcada pelo conhecimento sobre os ritmos da natureza e pelos direitos que regulam as práticas pesqueiras. A luta pela reinstalação dos barracões, portanto, está ligada, para ele, tanto ao patrimônio cultural material e imaterial quanto a questões de direitos humanos, refletindo a importância da atividade para a sobrevivência e as tradições locais.
‘Em apuração’
Século Diário procurou a Prefeitura de Vila Velha para obter informações sobre o pleito dos pescadores, mas a gestão se limitou a dizer que “está em apuração sobre a situação”.