Pescadores e ambientalistas apontam falta de transparência e invisibilidade da pesca no licenciamento
O Porto Central ainda não apresentou condicionantes socioambientais específicas para compensar ou reparar os danos decorrentes do empreendimento, que se pretende instalar em Presidente Kennedy, extremo sul do Estado, na divisa com o Rio de Janeiro. A percepção é de pescadores e ambientalistas que acompanham o licenciamento, que já conta com Licença de Instalação emitida pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
“Não se fala em condicionante para os pescadores. Se tem, até hoje não foi apresentado, não fomos ouvidos. Quando faz reunião, eles só dizem que ‘estamos fazendo isso, aquilo, vamos fazer’, não somos consultados, só somos comunicados do que eles querem fazer. Até hoje não falaram nada. O pescador não vai ter opção e ali é sobrevivência das pessoas, e a única coisa que sabem fazer é pescar”, relata Manoel Buenos dos Santos, o Nego da Pesca, coordenador-geral do Movimentos dos Pescadores e Pescadoras (MPP) e presidente da Federação das Associações de Pescadores Profissionais e Aquicultores do Estado (Fapaes).
“O que vai acontecer com as 400 famílias de pescadores que pescam no mar e no rio Itabapoana? Essas 400, você multiplica por quatro ou cinco, que são as pessoas que limpam o pecado, fazem as redes, vendem. A gente não sabe como vai ser o futuro das próximas gerações”, suplica.
De fato, a LI nº 1436/2023, concedida em 11 de maio, não faz menção ao Programa Compensação da Atividade Pesqueira (PCAP), presente no Relatório de Impacto Ambiental (Rima), publicado há dez anos, em julho de 2013. A Licença lista apenas a obrigatoriedade de execução de sete programas: Comunicação Social, Educação Ambiental, Monitoramento do Desembarque Pesqueiro, Capacitação Profissional, Monitoramento Socioeconômico, Mobilização e Desmobilização de Mão de Obra e Apoio ao Desenvolvimento Regional (PADR).
A respeito da reclamação dos pescadores de falta de diálogo com a categoria, o Ibama respondeu a este Século Diário que um parecer técnico – nº 60/2023-Comar/CGMac/Dilic – informa a realização, pelo empreendedor, de “reuniões com as comunidades da Área de Influência, com as instituições compostas por três fóruns de Participação Social”, em que foram registradas “67 reuniões, com 1.149 participantes e 425 instituições, desde maio de 2022”.
Entretanto, prossegue a nota, “foi solicitado ao empreendedor comprovação e lista de presença de tais reuniões e reforçado a necessidade de comunicação com todas as comunidades impactadas e não somente aquelas que fazem parte do Fórum, Comitês, Comissões ou Organizações Sociais representativas das comunidades ou da pesca e de modo a incluir a informação sobre a atualização do quantitativo de oportunidade de vagas de emprego relativo, somente a fase 1 do projeto”.
O Ibama orienta ainda que, “a partir deste momento, as comunidades impactadas poderão entrar em contato e cobrar o empreendedor por meio do canal de ouvidoria ou entrar em contato com o canal de ouvidoria do próprio Ibama para cobrar ou acompanhar o andamento das ações de mitigação ou compensação dos impactos previstos”, havendo ainda, complementa, o Programa de Educação Ambiental, que “deve estar voltado às demandas das comunidades afetadas”, bem como o “Canal de Ética (0800 5171045) e site do Porto como canais diretos de comunicação”.
Nego da Pesca conta que a Campanha Nem Um Poço a Mais tentou uma conversa com o Ibama, o empreendimento e o governador Renato Casagrande (PSB) durante uma manifestação realizada dia 15 de junho, que partiu da Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória. “Questionamos ao Ibama como liberam uma licença para um empreendimento de impacto tão grande para os pescadores e a sociedade em geral! Inclusive a tradição da Igreja das Neves, que passa mais de 60 mil pessoas na festa. Nada disso está sendo levado em consideração!”.
Especificamente sobre o mar e o rio, descreve Nego, será feito o corte da restinga próximo à foz e a retirada de areia para abrir o canal dos atracadouros. “Vão jogar todo aquele sedimento no mar, uma quantidade maior que do rejeito de Mariana: 64 milhões de metros cúbicos! No fundo costuma tirar alguns produtos contaminantes como mercúrio, como aconteceu no Porto do Açu no Rio de Janeiro, vai contaminar tudo! Parece que o Ibama não aprende, não leva em consideração o que acontece em outros lugares. Os pescadores estão muito preocupados com contaminação e outros impactos no meio ambiente, vão mexer em coisa que está quietinha no subterrâneo”.
Nego também reconhece uma mobilização da classe menor do que a gravidade do momento exige. “Pescador só reage, falando de um jeito bem popular, quando ‘a água bate na bunda’. O inimigo são as grandes empresas e indústrias. Nós temos que ser mais unidos nas lutas”, pondera.
União que se faz cada vez mais necessária, pois os tempos estão mais difíceis. “Eu tenho orgulho de dizer que criei minha família e formei três filhos com pós-graduação com a pesca. Cada tijolo é um peixe que eu peguei”, exclama. Uma abundância que não se mostra mais, com tantos empreendimentos e poluição e pesca industrial predatória invadindo os territórios de pesca artesanal.
Tribunal do Mar
O Tribunal do Mar, que realizou um encontro internacional em novembro passado, tratou dessa disputa desigual de poder no mar. “Nós somos um calo no sapato deles. Quando o Ibama, os órgãos fazem essas coisas para tirar nós da nossa área de pesca, é para deixar o território livre para os grandes empreendimentos, porque quando acontece acidente, o pescador é o primeiro a denunciar. Em São Mateus, quando a plataforma pegou fogo, quando o óleo veio da Paraíba, nós pescadores artesanais fomos os primeiros a avisar às autoridades”.
A desconfiança com os órgãos que teriam que fazer a gestão e fiscalização ambiental contra os grandes degradadores vem de situações como a que envolve a agora gestora socioambiental do Porto Central, Sueli Passoni Tonini, que pouco antes de assumir o cargo executivo, foi diretora-presidente do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), e atuou diretamente na liberação da licença ambiental do Ferrous, empreendimento que antecedeu o Porto Central no histórico de projetos portuários no município, além de autorização para a instalação do Estaleiro Jurong, em Aracruz, norte do Estado, e da oitava usina da Vale, no Complexo de Tubarão, em Vitória.
Todos, empreendimentos que não geram desenvolvimento equitativo, apenas aumentam a concentração de renda não mãos de poucos, que lucram com a degradação socioambiental de muitos.
“Presidente Kennedy é um dos municípios mais ricos do Estado, com royalties de petróleo, mas é a miséria que é para a população. E o que o Porto Central diz que vai trazer de renda, não é suficiente para receber as pessoas que vão chegar ali para trabalhar, a gente imagina isso, quando olha o que aconteceu em outros lugares. A saúde, a educação, a segurança pública, não estão preparadas. Vai ser um crescimento desordenado. Chega pessoas do bem para trabalhar, mas atrás delas, vem pessoas ruins, com tráfico de drogas, prostituição. Quando terminam as obras, as pessoas boas vão embora e as ruins ficam ali. Exemplo é o que aconteceu em Barra do Riacho, quando construiu a Aracruz Celulose. Posso falar com muita propriedade. Era a Ditadura Militar, eu estava no Exército e tive o desprazer de fazer a segurança do Figueiredo na inauguração da Aracruz Celulose. Não é o que a gente quer ver acontecer de novo”, argumenta o coordenador do Movimentos dos Pescadores e Pescadoras (MPP).
O momento, afirma, é de união. “A união faz a força e tudo o que eles [grandes empreendimentos] querem é a gente [população] dividido”.
Contradição climática
Educadora da Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Espírito Santo, Daniela Meireles participou do protesto do dia 15 ao lado de Nego da Pesca e outros integrantes da Campanha Nem Um Poço a Mais. Ela questionou diretamente Renato Casagrande, que por acaso passava pela Praça, por ocasião do lançamento das obras de reforma e restauro do Theatro Carlos Gomes, ali em frente.
“Ele assume que o Porto Central é um empreendimento da economia fóssil, mas não responde à contradição de apoiar isso enquanto lidera os governadores nas COPs [conferências mundiais sobre o clima]”, expõe. O apoio, ressalta, que hoje é tácito, já foi mais robusto, como quando terras requeridas para as obras foram declaradas de interesse público.
O cinismo também emana do empreendimento. “O projeto não tem transparência. E mesmo quando vamos ao escritório deles, quando tentamos um diálogo, tentam fechar a porta na nossa cara. Depois tentam dividir o grupo para não ter uma conversa mais ampla, fechando algumas pessoas numa salinha, e, como a gente não aceitou, chamam a polícia”, relata, sobre a última ação do dia 15.
“O Porto Central não tem abertura para dialogar com as críticas e negam qualquer ação de intimidação das pessoas nos territórios. Naturalizam a violência que as mulheres podem sofrer nos territórios, dizendo que vão se comprometer com palestras de educação sexual. Tentam se diferenciar de qualquer outro porto devastador anterior a eles, mas é difícil crer, porque até agora não deram nenhuma demonstração de que será mesmo diferente. Que salvaguardas o Porto Central tem para as famílias de pescadores, para a Igreja de Nossa Senhora das Neves, mulheres, para a restinga? Não apresentaram nada até agora”.