Lígia Vianna, viúva do ambientalista assassinado, se une à luta contra privatização
“Neste momento, está sendo mais difícil barrar o que está acontecendo do que foi condenar os assassinos do Paulo”. A manifestação é de Lígia Vianna, viúva do ativista ambiental Paulo César Vinha, durante a audiência pública nessa semana que reuniu mais de 300 pessoas para discutir o programa de concessão de seis parques estaduais capixabas para exploração turística pelo empresariado durante 35 anos. Entre as áreas definidas no projeto, está a unidade de conservação de Setiba, em Guarapari, nomeada em homenagem ao ecologista assassinado no local por empresários contrabandistas, enquanto fotografava uma extração ilegal de areia em uma área degradada da reserva, em 1993.
A fala da arquiteta faz referência à imposição do governo do Estado e à dificuldade de impedir a degradação em curso, o que motivou, como avalia, um movimento ambientalista há muito tempo não visto, marcado por forte adesão. Apesar de ver com esperança o crescimento dessa mobilização em resistência ao Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (PEDUC), ela destacou que as organizações sociais e comunidades foram pegas de surpresa e precisaram se articular rapidamente para impedir mais degradação no Espírito Santo.
Lígia criticou o retrocesso representado pelo desmonte de políticas da área e apontou que o projeto em discussão fere o legado da luta de Paulo César Vinha e as conquistas que ele ajudou a promover pela proteção ambiental. Ela recordou que, no ano anterior, quando completaram 30 anos da execução do ambientalista, foi abordada pelo govenador Renato Casagrande, em um evento de homenagem, quando ele falou sobre um projeto de instalação de banheiros, alojamentos para pesquisadores e uma lanchonete no parque. “Fiquei satisfeita, teria uma infraestrutura mínima, mas quando nesse ano uma pessoa da minha família enviou para mim o projeto do parque, eu levei um choque”, relata.
Durante a audiência, Lígia dirigiu-se diretamente ao secretário de Estado de Meio Ambiente, Felipe Rigoni, lembrando-o de sua tentativa de marcar uma reunião para discutir o projeto futuro da unidade de conservação, após tomar conhecimento das propostas de concessão, e questionou a falta de retorno. Segundo ela, a situação evidencia a dificuldade de preservar os últimos refúgios naturais dos interesses de grupos econômicos sobre essas áreas.
Além da esposa, o biólogo deixou um filho de 12 anos na época do crime. “Meu filho não quis vir, disse que iria se entristecer. Desistiu de cursar Biologia, porque tem medo de ser morto como o pai. A última foto de Paulo foi em uma reunião com caciques, lideranças indígenas e outros ambientalistas. Coincidentemente, foi assassinado logo depois, estava lutando contra os areais na restinga e a produção de eucalipto [da ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria, atual Suzano], e hoje no norte do Estado quase não se encontra mais mata nativa”, observou.
A arquiteta também criticou a ideia de se espelhar em modelos norte-americanos, como propõe o projeto idealizado por Rigoni, ressaltando a particularidade das dimensões do Parque Paulo César Vinha, que compreende cerca de 15 km². “Ouvi comparações com o Grand Canyon e Yellowstone, nos Estados Unidos. Eu estive no Grand Canyon, é uma coisa imensa. Quando se fala nessas concessões, precisa ter noção de tamanho, o espaço importa”, defende.
Lígia citou, ainda, os problemas ambientais enfrentados pelos Estados Unidos, país onde viveu e onde a vegetação de restinga foi destruída. “É o país que mais desmata e destrói o meio ambiente, enfrentam furacões, e como não tem restinga que faria a proteção, a destruição é muito maior. O que pode acontecer aqui? Porque as dunas de restinga dão sustentação e fazem preservar as vegetações que a gente não encontra em outro lugar. Não temos que nos espelhar neles, se as empresas vêm de lá, é porque aqui tem interesse”, alertou.
Resistência
O movimento contrário ao projeto idealizado pelo secretário de Meio Ambiente une comunidades tradicionais, organizações sociais, servidores e ambientalistas diante dos riscos representados pela implementação de um programa de privatização de unidades de conservação sem transparência e participação social, principais pontos destacados pelos participantes durante a audiência pública convocada pela Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa.
Além do Parque Paulo Cesar Vinha (PEPCV), em Guarapari, o programa estabelece a transferência do manejo dos parques estaduais de Itaúnas (PEI), em Conceição da Barra; Cachoeira da Fumaça (PECF), em Alegre, sul do Estado; Forno Grande (PEFG) e Mata das Flores (PEMF), em Castelo, e Pedra Azul (Pepaz), em Domingos Martins, na região serrana. A previsão é de realizar um leilão para concessão das unidades em 2025.
Um dos conselheiros do Parque Paulo César Vinha, Lúcio Lopes, destacou as falhas do governo na fiscalização e conservação das áreas de preservação e compartilhou a preocupação com a presença de vegetação exótica nas ilhas de Guarapari e o impacto ambiental crescente. “Uma concessão de 35 anos é muito preocupante. Eu implorei à gestora do parque para ter acesso ao projeto e nem eles tinham conhecimento. Como liderança comunitária, vejo a omissão e a degradação. Se não temos condições nem para cuidar do nosso patrimônio, como vamos entregar isso para terceiros?”, questionou.
A diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos do Estado (Sindipúblicos) e servidora do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), Silvia Sardenberg, reforçou a fragilidade do órgão ambiental, provocada pela falta de investimentos e concursos públicos, presença de diretores ligados ao setor privado, e medidas que tiram a autonomia da autarquia e os mecanismos de proteção, como a mudança legislação de licenças ambientais, por meio da Lei 1073/2023, apelidada de “Lei da Destruição”, que flexibiliza as regras para licenças e estudos ambientais no Estado. Além disso, ela destacou tentativas de extinguir o Iema, barradas apenas pela mobilização dos servidores, mas apontou que a autarquia continua sem recursos suficientes para funcionar adequadamente.
“Tentam extinguir o Iema por inanição. Queremos que os servidores tenham voz nesse processo, mas falar em público que vai ter participação quando estão prevendo somente apresentar o projeto depois da modelagem terminada, não é consultar. Participação é deliberação, mudar as cláusulas, porque vai ficar em uma área sensível. Se há áreas degradadas dentro de um parque, é porque não foram recuperadas. Não é isso que se quer”, reforçou Silvia, destacando a importância de se priorizar a recuperação e a preservação dos espaços de conservação.
Empreendimentos turísticos
Os primeiros projetos de infraestruturas turísticas para o Parque Estadual de Itaúnas, em Conceição da Barra, e o Parque Estadual Paulo César Vinha, em Guarapari, modelados pela consultoria Ernst & Young, contratada sem licitação por 8 milhões, foram divulgados pela imprensa antes de passarem por consulta popular. Os planos incluem estruturas de grande impacto em áreas naturais protegidas, como teleféricos, tirolesas, restaurantes, hospedagens e estacionamento para centenas de veículos.
No Parque Estadual Paulo César Vinha, o plano divide as intervenções em dois núcleos. No primeiro, que engloba a portaria principal, a Lagoa de Caraís e o Mirante do Alagado, serão instalados teleféricos, uma torre de tirolesa e trilhas suspensas. O segundo, que cobre o acesso secundário, abrange a Lagoa Feia e áreas alagadas e receberia a instalação de 28 glampings e bangalôs, decks flutuantes, piscina e um restaurante na rocha.
Em Itaúnas, o plano de intervenção é dividido em cinco polos. O primeiro engloba a região do Hotel Barramar, segundo a Seama, projetado pelo escritório do arquiteto Oscar Niemeyer e que ainda dependeria de ampliação da área do parque. O segundo reúne intervenções na antiga foz do Rio Itaúnas, e, depois, estão previstas as intervenções zona da sede, no Polo da Trilha dos pescadores e na Praia do Riacho Doce.
Legado vivo
Paulo César Vinha nasceu em Conceição do Castelo, no sul do Espírito Santo, em 1957, e mudou-se para Vitória aos 17 anos, onde se engajou nas causas ambientais, sociais e políticas. Fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) no Espírito Santo, também colaborava com o Greenpeace e apoiava as comunidades indígenas de Aracruz, denunciando os impactos da monocultura do eucalipto.
Vinha foi um forte opositor à exploração predatória de recursos naturais, especialmente no caso da extração de areia na área de restinga do Parque Estadual de Setiba. Em abril de 1993, enquanto fotografava atividades ilegais de extração de areia no parque, foi assassinado pelos empresários Aílton e José Barbosa Queiroz, envolvidos no contrabando de areia.
Os irmãos Queiroz foram capturados em 2 de julho de 1993. Ailton foi condenado quatro anos depois, em 1997, a 16 anos e seis meses de prisão. José Queiroz havia sido absolvido no primeiro julgamento, mas o Ministério Público recorreu e conseguiu anular a decisão. Ele foi condenado a 17 anos de reclusão e saiu em liberdade condicional após cumprir quatro anos da pena. Ailton fugiu para não ser preso e ficou foragido. “A última notícia que tive dele é que estava internado em um hospital por causa de um AVC”, conta Lígia Vianna.
Em homenagem à luta do ambientalista, o Parque Estadual de Setiba foi renomeado para Parque Estadual Paulo César Vinha em 1994. O legado de Paulo Vinha permanece vivo através de seus companheiros, que continuam a defender as causas ambientais e sociais pelas quais lutou, e nos movimentos sociais pela preservação da vida.
Em 2023, a TV Século lançou uma entrevista em memória do ambientalista com antigos amigos de Paulo, Maurino Fidelis, Ricardo Vereza e Perly Cipriano, que compartilharam suas experiências com o ativista, destacando sua personalidade forte, suas causas e o impacto de sua determinação no movimento ecológico. Confira a seguir: