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Proteger e monitorar áreas naturais é essencial para prevenir futuras pandemias

Junto a vacinas e mapeamento genômico, deve haver proteção ambiental, enfatizam pesquisadores da Fiocruz

Leonardo Sá

“Temos que estar preparados para a próxima pandemia”. O alerta, vem sendo enunciado por pesquisadores da saúde, meio ambiente, economia e direitos humanos em todo o mundo, aqui é ecoado pelo virologista Edson Delatorre, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e integrante do grupo de pesquisa da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) que estuda o monitoramento genômico do novo coronavírus (SARS-CoV-2). 

Na última quarta-feira (13), o grupo concluiu que a nova mutação do patógeno causador da Covid-19, identificado no Japão, é originário do Amazonas, no norte do país. Considerada a variante mais agressiva do SARS-CoV-2 até o momento, a P1, como foi denominada, certamente já está circulando por todo o país, inclusive no Espírito Santo, conta Delatorre, sendo uma das causas da atual intensidade da segunda onda da pandemia, com subida acentuada do número de casos e de mortes em todos os estados da federação. 


“Achávamos que o vírus mutava pouco, acumulava duas a três mutações por mês. Mas por algum motivo, no final do ano passado, o número de mutações aumentou muito: doze em um prazo curto”, conta o virologista. “O Brasil está vivendo uma epidemia descontrolada”, avalia.

Delatorre conta que a estimativa é de que existam hoje no Brasil 800 linhagens de coronavírus, sendo a B.1.1.28 e a B.1.1.33 as principais. A partir do momento que as sublinhagens aparecem o nome extenso é abreviado, como é o caso do P1 de Manaus, derivado da B.1.1.33.

Em geral, as mutações tornam o vírus mais e mais transmissível, sendo estudada ainda a possibilidade de também causar estados mais agravados das doenças nos infectados. “O que se supõe é que essas novas linhagens predominem entre a população. Como são mais transmissíveis, têm vantagem adaptativa. É o que já aconteceu com os vírus do ebola, HIV e outras epidemias. Por isso a pressa em controlar a infecção. Quanto mais tempo demorar, mais ela produz mutações e fica mais difícil de erradicar, tornando uma doença sazonal, como a dengue”, explica.

O monitoramento de Manaus pela Fiocruz tem sido mais acurado, conta Delatorre, devido ao perfil da pandemia no estado, sempre mais desafiador, em comparação por exemplo com o Espírito Santo, onde ela está mais controlada. Mas a intenção da Fiocruz é fazer o monitoramento genômico de todos os estados, por amostragens.

Atualmente, a Fiocruz é referência nesse trabalho, em âmbito nacional e internacional. As universidades brasileiras, que poderiam auxiliar, ainda não têm estrutura para esse tipo de pesquisa, mas algumas estão procurando se equipar. Na Ufes, conta Delatorre, foi inscrito um projeto de financiamento para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pra estruturar o monitoramento genômico. “Já era pra ter começado, mas só vão divulgar o resultado em fevereiro/março”, lamenta.

Por enquanto, as amostras capixabas e de outros estados estão sendo enviadas para a Fiocruz no Rio de Janeiro para o sequenciamento e obtenção dos dados genômicos. “Em breve vamos conseguir saber quais variantes do coronavírus estão circulando aqui”, acredita.

A Fundação já emitiu nota técnica para o Ministério da Saúde estimular a vigilância genômica no território brasileiro, mas “o poder de tomada de decisões é do ministério”, ressalva. O governo do Amazonas também já foi notificado, para concentrar esforços nos locais onda a variação é mais concentrada.

“Poderia ser feito o mesmo que a Inglaterra e África: lockdown, restrições de viagens. Inglaterra é um modelo. Mesmo vacinando, decretaram lockdown”, diz. Outro exemplo é Israel, que já conseguiu vacinar um quarto da população e planeja a vacinação dos menores de 16 anos. “Israel é o farol que vai apontar pra onde a gente caminha”, contextualiza. “Imunidade de rebanho sem vacina acontece com a morte das pessoas mais suscetíveis, que não é o ideal”, assevera.

Conservar e pesquisar

Em paralelo ao mapeamento genômico do vírus e a produção de vacinas, Delatorre enfatiza a urgência em se investir em proteção e monitoramento ambiental, citando estudos internacionais nesse sentido, alguns, indicando até mesmo os quantitativos necessários em dólares, menores que os valores gastos e os prejuízos econômicos medidos até agora com a pandemia de Covid-19.

Um recente relatório da ONG WWF, por exemplo, cita alguns locais potenciais de emergência de futuras pandemias, devido à elevada biodiversidade e acelerado desmatamento, com destaque, no Brasil, para a Amazônia e o Cerrado.
O que não significa, afirma o virologista, que ecossistemas como a Mata Atlântica, que cobrem o Espírito Santo, estão fora de perigo para o surgimento de pandemias. Nosso bioma é um dos 35 hotspots do mundo, ou seja, lugares que concentram, simultaneamente, mais biodiversidade e maior redução territorial por desmatamento.

“A gente tem que ter cuidado porque não sabe se o SARS-CoV-2 vai saltar para algum animal, de volta. Isso ocorreu com os minks, na Europa, que são suscetíveis ao coronavírus. Em fazendas onde eles são criados [para produção dos luxuosos casacos de vison], o vírus os contaminou e voltou para os humanos. A gente não sabe se existe algum animal na Mata Atlântica que pode atuar como reservatório futuro pro SARS-CoV-2. Com a febre amarela já acontece isso, as epidemias vêm em ondas. O vírus circula na natureza, surge uma nova linhagem e volta pro homem”, narra.

As soluções ambientais para a prevenção de novas pandemias? “Preservação e pesquisa”, responde, sinteticamente, seguido de um quase lamento. “É o discurso de sempre, que a gente fica até triste de ter que repetir, repetir, e não ver ser implementado”. É preciso entrar na floresta, sim, diz o pesquisar. Mas com cautela. Para pesquisar, investigar, proteger. “Fazer o monitoramento das populações de animais, acompanhar os surtos”.

E instiga: “Será que está havendo algum surto de vírus respiratório nos animais aqui? A gente conseguiria enxergar esse surto antes de alcançar os humanos? Um monte de cachorro do mato ou onça pintada morrendo, teríamos capacidade de identificar e estudar? A nossa ariranha é da mesma família do mink!”.

“É importante conhecer. Na década de 1950 um pesquisador colocou uma armadilha na floresta de Uganda pra estudar um mosquito que picava os macacos. Era o zika vírus. Somente décadas depois ele causou problemas na população humana. Será que hoje me dariam verba pra eu pesquisar por exemplo os mosquitos que circulam em um fragmento de mata no Caparaó?”, provoca, numa crítica direta à falta histórica de investimento em pesquisa de base no Brasil, acentuada pelo atual governo federal.

“Saúde única”
Ainda na Fundação Osvaldo Cruz, o Programa Fiocruz Mata Atlântica tem trabalhado há mais de uma década para agregar a dimensão social à ambiental e contribuir no esforço de prevenção de novas pandemias. O objetivo é fortalecer uma compreensão integrada da saúde, a chamada “Saúde Única”, ou One Health, no original em inglês. O conceito foi cunhado na década de 1990 a partir da junção da medicina humana e animal, sendo depois incorporada a saúde ambiental, para uma abordagem estratégica de prevenção de doenças emergentes.

“O grande desafio das respostas pra questões sanitárias é que elas têm que ser integradas, promover uma compreensão mais integral do fenômeno saúde e doença, a partir de múltiplas determinações: econômicas, sociais, ambientais. As pessoas precisam ser retiradas da condição de vulnerabilidade”, expõe o sociólogo Gilson Antunes, coordenador do programa Mata Atlântica.

“O mundo está refletindo sobre isso de vinte anos pra cá com a compreensão dos riscos das pandemias”, pontua. A quarta revolução industrial (4.0), acentua, “não tem preocupação com bem-estar, mas com a maximização dos lucros e a incorporação de ativos pra continuar maximizando lucros. Anexar terras não é uma economia racional e sustentável; é destrutiva, como se viu com a mineração em Mariana e Brumadinho, ou na expansão do deserto verde, em que as empresas de celulose e papel incorporam terras e expulsam as pessoas do campo”, exemplifica.

É uma prática econômica, salienta, que maximiza lucros para poucos por meio do aprofundamento da dívida interna, retirando capacidade de investimento em educação, saúde, infraestrutura, meio ambiente. “Nos países mais equilibrados, a dívida é em torno de 10% a 15%, a brasileira chega a quase 50%”, compara.

No Rio de Janeiro, a equipe de Gilson atua numa visão territorializada, focada numa região periférica no entorno do Parque Estadual da Pedra Branca – maior remanescente de Mata Atlântica em área urbana do país, situado na região metropolitana da capital fluminense – onde os moradores interagem cotidianamente com os recursos florestais, ao mesmo tempo em que convivem com problemas de baixa infraestrutura urbana, como falta de regularização fundiária e saneamento básico.

Para o cientista, o momento requer humildade. “Não é só o paradigma tecnológico. A prevenção não é só tecnológica, é predominantemente social”, roga.

Vírus em potencial

Uma das linhas do Programa é coordenada pelo zoólogo Ricardo Moratelli e Marina Galvão Bueno e investiga a circulação do Sars-CoV-2 e de outros vírus de potencial zoonótico, ou seja, que podem infectar humanos, em animais selvagens (saguis, morcegos), domésticos (cães e gatos) e sinantrópicos (que convivem em ambientes antropizados a despeito da vontade do ser humano, como ratos e pombos).

O trabalho tem ajudado a desmistificar o perigo dos morcegos, que foram alvo de tentativas de extermínio no inicio da pandemia, como ocorreu com os macacos durante a última epidemia de febre amarela, entre 2016 e 2017, e chama atenção para o papel ecológico fundamental desses animais na natureza, especialmente como disseminadores de sementes. “Ao invés de exterminá-los, a melhor estratégia é manter as populações de animais em seus habitats naturais, que devem ser bem preservados para que se mantenha o equilíbrio ecológico entre parasitas e hospedeiros”, orienta Ricardo Moratelli.

Situações de “estresse fisiológico”, ressalta, provocadas por desastres ambientais como incêndios, desmatamentos e caça, podem levar a uma redução da condição imunológica dos animais, favorecendo o surgimento de determinadas doenças neles. “Se ninguém caçasse grandes primatas, não teríamos HIV”, exemplifica.

Além da pesquisa genética, são feitas atividades de educação com a população local, por meio de oficinas e rodas de conversa. “Se a gente entende que um vírus pode chegar no ser humano no contato com um animal, a gente tenta trabalhar essa intervenção a partir da educação”, diz.

“Covid é um exercício de preparação”

Pesquisa, prevenção, educação, justiça social e proteção ambiental são urgentes, afirma Moratelli. “Vacina é muito caro e é um processo muito longo, que demora muitas vezes mais de uma década pra conseguir chegar a uma vacina que funcione. E até esse ponto, já se perderam muitas vidas. Vacinas são paliativos. Por outro lado, proteger os ecossistemas e mantê-los o mais bem conservados possível é garantia de que os vírus ficarão onde estão”, explica. 
Os eventos de doenças emergentes e epidemias têm se tornado cada vez mais comuns, reforça o coordenador. “A questão é: quando haverá outra Covid19? A pergunta não é se, mas quando”.

A atual pandemia, propõe, pode ser um exercício, uma oportunidade pra nos preparamos pra próximas. “Devemos nesse momento fazer um compromisso de cuidar melhor do planeta pra que esses eventos sejam menos frequentes. E quanto acontecerem, estarmos melhor preparados”.

Nesse sentido, os gestores públicos devem assumir a importância da agenda ambiental. “O Brasil foi líder em conservação da biodiversidade em boa parte do século XX. Os governos do PT foram exemplo pro planeta, éramos considerados líderes em conservação da biodiversidade e tínhamos um brasileiro nas Nações Unidas, o Bráulio Dias, professor da UnB [Universidade de Brasília]. Era o representante maior de um grupo que pensava a conservação da biodiversidade do planeta, criou o Bolsa-verde e outras iniciativas. O que estamos vendo hoje é um retrocesso muito grande, principalmente por parte do Brasil e dos EUA, saindo do Acordo de Paris, por exemplo”, compara.

A solução, exalta, passa pela “pressão popular sobre os gestores e também a partir do setor privado, que pode assumir uma agenda de conservação e pressionar os governantes a assumirem responsabilidades”. 
Bilhões em investimentos para poupar trilhões em pandemias

Embasando essa visão holística, política e cidadã para implementação da Saúde Única como forma de prevenir pandemias, outro estudo internacional recente é encabeçado pela National Geographic Society e a Conservation International, entre outras entidades. Compilado em julho passado pela Plataforma Intergovernamental Político-Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) – grupo composto por cientistas acadêmicos, governos e organizações sem fins lucrativos – o estudo mostra como a redução de habitat e da vida selvagem expõe os humanos a doenças novas e emergentes.

O relatório cita a estimativa de que haja 1,7 milhão de vírus desconhecidos no mundo, alojados em mamíferos e aves, dos quais metade pode infectar pessoas. Reportagem publicada pela revista National Geographic Brasil, ressalta não ser coincidência que pandemias estejam surgindo com mais frequência, pois as atividades humanas têm prejudicado com mais agressividade o meio ambiente, levando as pessoas a terem contato cada vez mais próximo com a vida selvagem, mas de uma forma desordenada e perigosa.

O relatório da IPBES propõe a criação de um conselho internacional para supervisionar a prevenção de pandemias, incentivar financeiramente a preservação da biodiversidade e investir em pesquisa e educação. O custo da estratégia é estimado em US$ 40 e US$ 58 bilhões por ano, valor menor que os trilhões em perdas econômicas causadas pelas pandemias. O grupo programa se reunir em deste ano para a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU, para desenvolver estratégias possam contribuir com essa meta de preservação global.

Um pouco antes, em julho passado, um artigo publicado na Science Magazine, calculou que um investimento de US$ 27 bilhões em proteção ambiental poderia iniciar um trabalho eficaz para prevenir futuras pandemias virais. A cifra, comparam os autores, representa 0,54% do total de perda de Produto Interno Bruto (PIB) global, estimada em US$ 5 trilhões até o momento e menos de 1% do orçamento anual dos Estados Unidos com o setor militar.

A orientação é pela manutenção de uma média de US$ 20 bilhões de investimentos anuais. Ao longo de dez anos, o montante investido em ecologia seria inferior a 2% dos custos estimados para a pandemia de Covid-19, em torno de US$ 10 a US$ 20 trilhões.

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