Suzano autoriza colheita informalmente e depois acusa de roubo e apreende material, denunciam quilombolas
A vida em meio ao deserto verde da Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose) tem especificidades que passam despercebidas por quem somente vê os monocultivos de eucalipto de fora, por imagens no noticiário hegemônico e publicidade ou, quando muito, pelas estradas de asfalto que os circundam.
O verde homogêneo das árvores enfileiradas e agrupadas por talhões comerciais escondem um conflito fundiário que dura mais de meio século. Depois de derrubar milhares de hectares de Mata Atlântica nativa, robusta, aos correntões, expulsando toda a fauna silvestre, a então Aracruz Florestal passou a se esforçar para expulsar também os donos humanos daquela terra tão cobiçada pela fábrica de celulose norueguesa que já não tinha espaço pra expandir plantios em seu país e continente natal.
Sobreviventes dos séculos de escravidão mantidos pela elite rural brasileira, a mais longa do planeta, os quilombolas que viviam na região, por eles chamada de Sapê do Norte, foram surpreendidos pela invasão do maquinário e dos capangas da empresa, que ou compravam as terras das famílias a preço vil – muitas vezes por meio do processo de grilagem que utilizava funcionários da empresa, conforme ficou demonstrado na CPI da Aracruz Celulose e confirmado pelo Ministério Público Federal em ação civil pública – ou as pressionava e ameaçava de tal forma que, por medo, centenas delas desistiram da luta e se mudaram para as periferias das cidades do norte do Estado ou da capital Vitória, criando quilombos urbanos como o do Território do Bem.
Os que resistiram até hoje, viram crescer o deserto verde que seca córregos, lagoas e nascentes, expulsa a biodiversidade, envenena toda a terra e água com agrotóxicos lançados via aérea e terrestre. Deserto verde que a empresa, a imprensa hegemônica e alguns setores da academia insistem em denominar de “floresta plantada”.
A perseguição e a violência empresarial também continuam e são muitos os relatos de abusos cometidos contra as famílias quilombolas do Sapê, seja por ação direta da Suzano, seja por ações e omissões do Estado e da polícia, que sempre chega no território mais disposta a defender os interesses do capital e não das pessoas. Ainda assim, as famílias resistem e lutam pela retomada do território que lhes é de direito, já certificado pela Fundação Palmares e aguardando titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
O episódio que teve início na última sexta-feira (7) é um exemplo dessa especificidade do deserto verde da hoje Suzano Papel e Celulose. A empresa acusa os quilombolas de roubarem galhos de eucalipto e, com suporte da polícia, apreendeu um caminhão utilizado na atividade. Ao longo da semana, acusou ainda as comunidades de atearem fogo num talhão de eucaliptal e atirarem contra funcionários que lhe prestam serviço de combate a incêndio.
A apreensão do caminhão e a acusação de roubo, no entanto, causaram indignação entre os trabalhadores, que iniciaram um protesto na BR 101, interrompendo a entrada de empregados e terceirizados num ponto de apoio da empresa, reivindicando a retirada da acusação de roubo e, mais importante, a regularização do processo de colheita dos resíduos de eucalipto para que novas situações como essa não se repitam mais.
“Primeira coisa é que a Suzano está errada. Ela é grande, uma multinacional, tem 22 associações trabalhando dentro da área dela, ela tinha que ter documento pra fazer a doação dos resíduos pra nós”, afirma Altiane Brandino dos Santos, quilombola da comunidade de São Domingos, um dos organizadores do protesto.
A reivindicação é pelo envio de nota fiscal por parte da Suzano quando libera os quilombolas para coletarem o resíduo em meio aos talhões de eucalipto, para que eles também possam emitir nota quando vendem o material para empresas da região, que trabalham com olaria, com produção de MDF (como a Placas do Brasil, em Pinheiros) e para agricultores que utilizam os galhos nos secadores de café e pimenta-do-reino.
“Ela libera as áreas pra tirar resíduo só ‘de boca’, sem nenhum documento. Depois, ela coloca polícia pra prender os caminhões e processar a gente por furto”, protesta Altiane. “A notinha que ela dá pra gente não vale nada. O policial federal que prendeu o caminhão disse que aquilo ali não tem serventia nenhuma e multou o rapaz do caminhão em quatro mil reais”, conta.
Naquela sexta-feira, ele relata que foi antes das nove da manhã que os trabalhadores se viram cercados com “polícia especial de Vitória, em carro e avião”. “Quem sempre libera as áreas pra gente é o Fabrício [empregado da Suzano]. Mas naquele dia o Fabrício disse pro policial que a área não estava autorizada. Nós ficamos revoltado por isso, porque levamos nome de ladrão e não somos”.
A acusação de fogo no eucaliptal e disparo de tiros contra funcionários da empresa aconteceu no domingo (9), em um eucaliptal no distrito de Braço do Rio, perto da divisa com a Bahia. Outra mentira, afirma Altiane. “O rapaz que atiraram contra ele é meu sobrinho. E mesmo que não fosse meu parente, eu nunca ia fazer isso. Eles [Suzano, Fibria, Aracruz] já colocaram polícia pra atirar contra nós. Nós não, nunca atiramos contra a empresa”, diz.
Foi somente na quarta-feira (12) que a empresa enviou um advogado pra conversar com as comunidades sobre suas reivindicações. Até o fechamento desta edição, não havia ainda uma decisão.