“Agora acabou o restinho de esperança que a gente tinha. Uma luzinha no fim do túnel acabou de apagar”. O lamento é do pescador Zé de Sabino, ao comentar a chegada dos resíduos de óleo em sua amada Regência, comunidade pesqueira na foz do Rio Doce, em Linhares, norte do Estado, que há quatro anos já convive com os impactos do crime da Samarco/Vale-BHP.
“A nossa vida estava girando em torno de 70%. Esse óleo agora vai acabar com os outros 30%, vai acabar de matar a gente”, metaforiza. “ Porque não é tirar a vida da gente, mas é acabar com todos os prazeres, de pescar, de tomar banho, de trabalhar, o lazer, o trabalho”, explica.
Zé de Sabino é uma das principais lideranças pesqueiras de Regência Augusta e foi protagonista do curta-metragem Das Águas que Passam, de Diego Zon, ganhador do segundo lugar no Festival de Berlim em 2016.
Também foi personagem de destaque nas páginas da saudosa Revista Século, quando brincou: “Regência é o melhor lugar do mundo pra viver. Mas não espalha, não, senão estraga”. Isso há quase vinte anos. Na entrevista desta quarta-feira (13) ao Século Diário, Zé de Sabino não perde o bom humor. Diz que estragou sim, mas não foi culpa nossa. “É o progresso, é assim mesmo”, minimiza, apesar do coração apertado. “A pesca é um trabalho, o pescador é um produtor de alimento. Queria voltar a pecar ontem, mas não é possível”, diz.
Mas mesmo com tantos estragos vindos do arcaico progresso baseado na indústria suja da mineração – minério de ferro, petróleo … – o experiente homem do mar afirma que sua Regência continua maravilhosa.
“Aqui é um lugar pacato ainda. Uma vila de pessoas muito simples e humildes. Temos quintais com cercas de arame de pau a pique, temos qualidade de vida, liberdade. É bem diferente de outros lugares, com câmeras, muro e cerca elétrica. Temos paz e sossego. A cultura é muito forte. Regência é muito rica em cultura, congo, festas religiosas, carnaval do Fubica. É rica em cultura”, descreve. “E tem o Zé de Sabino, que conta muitas histórias verdadeiras de pescador. Eu tenho provas”, gargalha, emendando um caso ocorrido há nove anos, quando nadou com uma boia de rede de pesca durante oito horas, salvando-se de um naufrágio em alto-mar, quando todos acreditavam que ele havia se perdido na imensidão salgada.
O alto-mar, inclusive, que era uma aventura esporádica, tornou-se, há quatro anos, o único endereço possível para uma pesca marinha com mais segurança em relação aos rejeitos de minério da Samarco/Vale-BHP.
Foto: Leonardo Sá
A esposa, Sonia Lima Oliveira, que o chama de Élcio, conta com pesar a necessidade do marido se lançar tão longe. “Élcio pesca de vez em quando, mas lá fora. Estamos comendo peixe sim. Ficamos dois anos sem comer nada. Depois de dois anos voltamos. Que seja o que Deus quiser, vamos morrer mesmo … Mas ele tem que ir duas milhas mar adentro. Antes ia na beira do mar, jogava de água, da terra mesmo jogava a rede, sem barco. Agora …”
A tristeza é imensa, afirma Sonia. Todos sentem, mas as crianças, puxa vida! “Meu filho ainda toma banho, teimoso. Ele é daqueles que gostam de pular no cais e cair no fundo mesmo. Me perguntou: Mãe, vou ficar de novo sem tomar banho no rio? Eu falo pra não ir, mas ele tá indo escondido. Chega em casa todo molhado”, narra, meio divertida, meio triste, meio preocupada. Afinal, sabe-se muito pouco ainda sobre o óleo.
O que Sonia sabe é que o Rio Doce fatalmente vai ser massacrado de novo. “Aqui é boca de barra, se entrar no mar, com certeza entra no rio. Não dá pra fechar [a foz] como fecharam em outros lugares. Tá todo mundo de olho, vigiando”, conta.
A mesma percepção tem Messias Caliman, presidente da Associação Comercial de Regência (ACR). Proprietário do camping mais antigo da vila, o Pintangueiras , Messias afirma: “Tudo que vem do mar encosta na praia das tartarugas. Esse vento leste joga tudo pra costa”, diz.
Dividir para conquistar
Como liderança comercial, Messias sabiamente consegue mesclar, em seu discurso, a prudência e o otimismo. A expectativa para o feriado da República, na próxima sexta-feira (15), é boa. “A estrada está boa, apesar da chuva. As pousadas e campings estão cheios. Vai ter o Micro Fubica e muitas atrações”, elenca.
Mas, ressalva: “Eu não vou ser cruel com o turista e mentir. Tem que evitar de ir ao mar e ao rio. Mas os atrativos da comunidade são vários. Então a pessoa não vai deixar de se divertir”, afirma, citando o trio Fubica, o congo, as lagoas, as trilhas, a cultura de Regência, de modo geral – reafirmando as palavras de Zé de Sabino – e a estrutura das pousadas e campings.
“Quase todos hoje têm piscinas”, diz, incluindo-se no rol da novidade. Inclui-se, porém, como uma exceção. Isso porque os investimentos feitos nos estabelecimentos, em sua maioria, foram com dinheiro das indenizações pagas pela Fundação Renova aos atingidos por ela selecionados,o que não foi o seu caso. Mas, mesmo assim, ele conseguiu se integrar, com recursos próprios. “Quinze dias antes do rompimento, uma pessoa de fora comprou um lote aqui e abriu um camping. Ela recebeu indenização e eu, que estou aqui há 25 anos, não recebi”, diz. “A gente tem alguns projetos. Sabe o nosso potencial, os nossos atrativos, tem que diversificar cada vez mais’, diz.
Foto: Divulgação
Sua exclusão do cadastro de atingidos, a propósito, é mais uma amostra das incoerências das mineradoras criminosas, que têm impingido às comunidades atingidas a máxima “dividir para conquistar”. Selecionando pessoas, comunidades e setores para serem indenizados e excluindo outros, semeia a discórdia, a competição, dividindo as pessoas, enfraquecendo a luta dos atingidos. “É tática de guerra”, reconhece.
Entre os tantos que não foram indenizados, estão muitas pousadas, supermercado e trabalhadores que viviam do turismo, do surfe, e foram obrigados a ir embora de Regência.
A onda perfeita
Nesse ponto, conecta-se a fala da Associação de Surf de Regência (ASR). “Várias pessoas tiravam seu sustento do surf, dando aula, sendo guia, trabalhando na fabricação e conserto de pranchas. Essas pessoas não têm nenhum reconhecimento como atingidos, estão à míngua, tendo que varrer chão de fábrica em Linhares”, relata o surfista Francelino Filho, da ASR . “Não existe nenhum programa que contemple os surfistas, pelo contrário. Toda vez que a Renova vinha fazer cadastro, o fato de ser surfista era uma informação não relevante. E a gente sabe que o surf é o maior chamariz pra Regência, é a onda perfeita, traz gente do Brasil inteiro”, ressalta.
Entre os surfistas, o temor é real e, por enquanto, o surf está sendo evitado. “Pode grudar [o óleo] nos olhos, no cabelo, pode engolir”, relatam alguns esportistas ouvidos pela reportagem.
“A recomendação como associação de surf é ter cautela. A gente pratica o surf hoje não mais na boca da foz, mas sim dentro da reserva de comboios. Então quem nos dá a informação mais preciosa é a gestão da própria reserva. Por enquanto em estado de alerta”, declara.
“Não há restrição de acesso à praia, mas a gente está preocupado, porque o óleo está vindo, a maré está enchendo e trazendo quantidade cada vez maior desses fragmentos. Amanhã cedo [quinta-feira, 14], na seca da maré, a gente vai ter uma ideia melhor”, diz Francelino.
O objetivo principal da ASR, afirma, é “a preservação da nossa onda e o fomento ao esporte”. “E hoje estamos está em stand by em relação ao fomento. É temerário fomentar. Queremos refazer o estudo da USP [Universidade de São Paulo], estender a toda a comunidade. Possivelmente todo mundo está afetado. Oito dos nossos associados que foram analisados, estão com metais elevados”, diz, referindo-se às análises feitas pela Universidade de São Paulo com 300 pessoas de São Mateus e Linhares, onde 297 apresentaram metais pesados acima do recomendado pela legislação, especialmente arsênio. “Era lama, agora é lama e óleo”, lamenta.
Monitoramento
Foto: Secom
Segundo divulgado pela Prefeitura de Linhares, os fragmentos da mancha de óleo, provenientes da malha que se desloca do Nordeste à costa capixaba, chegou à região da Reserva Biológica de Comboios, na manhã desta quarta-feira (13). Pequenas porções foram observadas durante monitoramento realizado por voluntários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Uma equipe do Exército Brasileiro foi deslocada à região para iniciar a operação de limpeza. No momento, oito militares estão empenhados na coleta dos fragmentos de óleo na faixa de areia.
Em Pontal do Ipiranga, sentido Degredo, os trabalhos de limpeza continuam na manhã desta quarta-feira (13). As ações contam com a colaboração de militares da Marinha do Brasil, Exército Brasileiro, do Corpo de Bombeiros, da Polícia Militar e membros da Defesa Civil Estadual, além de voluntários do ICMBio, Projeto Tamar e da Universidade Federal do Estado (Ufes).
De acordo com o Comitê de Crise, após uma avaliação e monitoramento no litoral de Linhares, nessa terça-feira (12), foram encontradas porções de substância oleosa na Vila de Povoação, próximo à foz do Rio Doce. A orientação é que a população não manuseie o material sem o devido equipamento de proteção individual.
Para mitigar os impactos no óleo cru sobre o ecossistema da região, o Sistema de Comando em Operações (SCO) de Linhares prevê o fechamento da foz do Rio Doce, em Regência. A medida, que evitará que o material atinja e contamine o estuário local – onde o rio encontra o mar –, é discutida com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
E para os trabalhos de contenção da foz, o Sistema de Comando em Operações de Linhares solicitou ao Governo do Estado 1,3 mil metros de barreiras de contenção, 800 metros de rede Bidim e 1,8 mil metros de redes de malha (pesca), que devem ser instalados em pontos estratégicos da foz.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente pede à população que colabore, caso encontre vestígio de óleo nas praias do município. O cidadão pode acionar o Comitê de Crise através do telefone 153. É imprescindível que não haja contato direto com o material.
E quem quiser se voluntariar nos trabalhos de contenção e limpeza das praias poderá aderir às ações planejadas pelo Comitê por meio do endereço de e-mail: [email protected]. Todos os inscritos passarão por treinamento com profissionais de órgãos ambientais e de segurança que integram o Comitê.
Desde o início das operações de monitoramento e limpeza no litoral, em 9 de novembro de 2019, já foram coletados 192 quilos de material oleado das praias de Linhares.