Pesquisadores reforçam preocupação com impactos após quase dez anos

“Se os rejeitos não forem retirados, ficaremos sujeitos eternamente [à contaminação]”. O alerta do pesquisador Adalto Bianchini, professor visitante do departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e integrante do departamento de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), resume a preocupação central dos pesquisadores do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA) quase uma década após o crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP.
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), no dia 5 de novembro de 2015, resultou na liberação de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, matando 19 pessoas e impactando mais de 2,5 milhões de pessoas no Estado e em Minas Gerais. Os resíduos percorreram 684 km do Rio Doce até alcançarem o mar em Regência, em Linhares, norte capixaba. Até hoje, os atingidos sofrem com a desestruturação social e política, além das perdas ambientais e econômicas.
Especialistas de 37 instituições de pesquisa, coordenados pela Fundação Espírito-Santense de Tecnologia (Fest), debateram impactos nos ambientes de água doce, costeiros e marinhos da região impactada do território capixaba, que se estende por núcleos urbanos a comunidades tradicionais. Eles avaliam que a remoção do material tóxico, especialmente nas áreas mais impactadas da bacia do Rio Doce e da região costeira adjacente, é uma medida prioritária para mitigar os efeitos que continuam a prejudicar a biodiversidade e a vida das comunidades atingidas.
Bianchini defende a priorização da retirada do material das áreas mais impactadas, buscando locais de maior estabilidade para evitar a contaminação contínua. Estão nesse grupo, especialmente entre 20 e 30 metros de profundidade, a região da foz do Rio Doce e a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Águas, que circunda o Refúgio de Vida Silvestre (Revis) de Santa Cruz, em Aracruz.
As chances de sucesso são maiores na área dulcícola (ecossistema aquático de água doce), apontam os pesquisadores, com potencial para reflorestamento de margens e recuperação de nascentes. No ambiente marinho, a vasta extensão de fundo lamoso dificulta as ações.
Para Fabian Sá, do departamento de Oceanografia da Ufes, o impacto genético na biota é o que levará mais tempo para ser revertido, demandando várias gerações. Ele também reforçou a importância de avançar nas ações de saneamento básico e reflorestamento, conforme destacado no último relatório do PMBA, elaborado com a participação de órgãos ambientais, universidades, atingidos e Fundação Renova. O novo acordo de reparação, homologado em 2024, prevê investimentos em torno de R$ 2,5 bilhões para saneamento em toda a bacia.
Maykon di Domenico, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), identificou efeitos negativos de metais particulados como alumínio, cromo, ferro, arsênio, níquel, manganês e chumbo, associados a alterações na clorofila, lama, oxigênio dissolvido, turbidez, nitrito, nitrato e fosfato. Os pesquisadores também constataram deformações no plâncton, base da cadeia alimentar de camarões, peixes e caranguejos, inclusive em tecidos consumidos por humanos, como músculos e fígado. Eles observaram que o Índice de Bioacumulação (IBR) para metáis tóxicos se mantém em níveis semelhantes aos da época do rompimento.
A cada evento hidrológico, como chuvas intensas, o material depositado no leito do rio é revolvido e transportado, perpetuando a contaminação da água e dos sedimentos, explicam. De acordo com a professora Kyssyane Oliveira, da Ufes, a dinâmica peculiar do Rio Doce, com seu alto aporte de sedimentos concentrados na foz, faz com que a presença contínua dos rejeitos represente uma ameaça constante à qualidade da água e à biodiversidade aquática.
Durante o encontro, o presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), João Carlos Gomes, conhecido como Lambisgóia, manifestou preocupação com a saúde da população, em especial de mais de 25 mil pescadores capixabas, agravada pela falta de estudos específicos na área da saúde humana, diante dos perigos comprovados.
Diante desse quadro, os especialistas enfatizaram a urgência de incluir ações de comunicação nas medidas de reparação, garantindo à sociedade o direito à informação. De acordo com o oceanógrafo Joca Thomé, coordenador do Centro Tamar no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o governo do Estado ficou responsável, na repactuação homologada em novembro de 2024, por criar um site que agrupe todas as informações referentes aos impactos verificados ao longo dos anos de estudo.
Entre as obrigações atribuídas à Samarco/Vale-BHP pelo novo acordo, estão a recuperação de áreas degradadas e o reflorestamento das margens do Rio Doce e a drenagem de 9,1 milhões de metros cúbicos de rejeitos da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves (também conhecida por Candonga, o antigo nome) instalada no limite entre os municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado, no estado de Minas Gerais. O projeto de dragagem e disposição final deverá incluir, ainda, as soluções de engenharia disponíveis; metodologias e as alternativas tecnológicas e locacionais para a disposição ambientalmente correta do material retirado; e os aspectos ambientais, sociais e econômicos da atividade.
A análise na definição de impacto ambiental foi embasada na Resolução nº 001/1986, do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que considera qualquer alteração nas propriedades físicas, biológicas e no meio ambiente causada por atividades humanas que afetem a saúde, segurança, bem-estar da população, atividades socioeconômicas, biota, condições estéticas e sanitárias, e a qualidade dos recursos ambientais, informou o professor Fabian Sá.
Uma vez que o nexo causal dos impactos e o rompimento da barragem já é considerado consensual, os pesquisadores discutem como acompanhar a efetividade das ações de recuperação. A criação de um sistema para visualizar essa evolução é uma das propostas em debate.
Joca informou que haverá uma reunião com órgãos ambientais para definir os próximos passos da reparação, considerando que o decreto da nova governança ainda não foi publicado. O novo acordo de repactuação prevê o fim da Fundação Renova até novembro de 2025, com um período de transição até maio de 2026. A supervisão das ações passará a um novo modelo coordenado por órgãos ambientais e representantes da sociedade civil, com apoio do ICMBio.
De acordo com ele, a Câmara Técnica de Biodiversidade (CTBio), criada em 2016, continuará participando da transição e da estruturação do novo programa de monitoramento, com o desafio de transformar o conhecimento científico em políticas públicas e medidas efetivas de recuperação sem a interferência da Fundação Renova, criada em 2016 pelas mineradoras para gerir a reparação e compensação dos danos causados pelo crime e criticada por atuar para omitir os impactos do crime, por meio da judicialização dos estudos, como forma de postergar ações urgentes.
‘Estudos urgentes’
Em 2024, o relatório anual apontou negligências graves nas ações de reparação nas áreas contaminadas. Especialistas reiteraram que a constatação do aumento da “biomagnificação” de metais pesados em animais de topo de cadeia, como peixes maiores, cetáceos e tartarugas marinhas, demonstra a urgência de se realizar, de uma vez por todas, estudos semelhantes em seres humanos. Os especialistas reforçaram a necessidade de entender de que forma essa contaminação, já comprovada nos animais aquáticos, tem afetado as pessoas, principalmente as que fazem consumo mais frequentes dos pescados, para que medidas de saúde pública sejam tomadas.
Estudos da Aecom Brasil, perita judicial contratada pelo Ministério Público Federal, também já haviam apontado para a gravidade dos efeitos de uma contaminação por metais na saúde humana, mas o Comitê Interfederativo (CIF) não reconheceu esses dados, tampouco as empresas criminosas, então as medidas judiciais e práticas não foram tomadas.