“A Renova já vem há muito tempo criminalizando a luta dos atingidos por direitos. Na medida em que se judicializa uma luta, a criminalização acontece, porque o judiciário brasileiro é conservador, é pró-empresa, não só no caso do Rio Doce”, analisa Heider José Boza, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens no Espírito Santo (MAB/ES).
A fala repercute a reportagem publicada nesta quinta-feira (25) pela Pública – Agência de Jornalismo Investigativo, com o título Áudio revela ameaças e intimidação de advogada da Renova aos atingidos pelo desastre de Mariana, em que a advogada Viviane Aguiar, coordenadora do setor jurídico da Fundação Renova, atropela as falas dos atingidos, impondo condições, segundo ela, determinadas pelo juiz responsável pelas ações federais do caso, Mário de Paula Franco Junior – episódio que ilustra a estratégia intimidadora com que a Renova tem agido nos territórios atingidos.
“O que a gente percebe é que o atingido está preso em amarras jurídicas. Na ponta tem a Fundação Renova e os advogados particulares, mas no alto escalão tem a empresa e o sistema judiciário, que cercam o atingido de todas as formas, para que acesse o direito de modo mais rebaixado possível. Ele tem que abrir mão de uma série de outros direitos, inclusive direitos civis, como o direito à livre manifestação”, pondera Heider.
De fato, a reportagem tem por base o áudio de uma reunião realizada em 21 de janeiro deste ano, apenas quatro dias após cerca de 50 pessoas, da Comissão de Atingidos de Naque/MG, terem realizado uma manifestação pacífica por seus direitos, interrompendo o fluxo na ferrovia Vitória-Minas, da Vale, uma das mantenedoras da Fundação Renova e responsável, junto da BHP Billinton, pela Samarco Mineração, proprietária da barragem de Fundão em Mariana/MG, que rompeu em novembro de 2015, provocando o maior crime ambiental do Brasil.
“Eu vou reforçar uma coisa e deixar muito clara: se tiver manifestação, onde vocês colocarem pessoas em risco, vocês paralisarem ferrovia, vocês fecharem…Enfim, manifestação que não seja pacífica, isso vai parar. Não pensem vocês, não pensem, ninguém aqui pense, que foi por causa de manifestação que a coisa está andando, porque vai ser o contrário, por causa de manifestação a coisa vai parar”, disse no áudio a advogada da Renova, Viviane Aguiar, referindo-se ao pagamento das indenizações devidas às vítimas.
“Não sou eu que estou falando isso, é o juiz dono do processo que está falando. Se tiver manifestação, a manifestação vai parar”, disse Viviane. “Façam de conta que isso aqui é um barco em alto-mar com todo mundo dentro. Dentro do barco está o juiz, a Fundação Renova, todos os advogados e todos os atingidos, lá em alto-mar, e aí, de repente, um resolve fazer um motim para afundar esse barco. Nós só temos duas opções, vocês concordam? Ou nós jogamos essa pessoa para fora do barco ou essa pessoa sai por ela”, afirmou.
Em outro momento, Viviane conta, como divulga a Pública, que “ele [o juiz] disse que não vai homologar nenhum caso, não sabe quando ele vai voltar a homologar. Tem algumas comissões que já peticionaram, ele não vai sentenciar, que ele vai fazer um termômetro, se a coisa continuar como está, isso vai acabar”, ameaçou. “Doutor Mário mesmo pediu que eu fizesse essa conversa com vocês até para que ele tenha um direcionamento de como que a gente vai seguir”, ressaltou.
Heider Barbosa explica que “essa estratégia da judicialização vem casada com a criminalização”. Desde 2020, pontua, as empresas criminosas têm se aproveitado da pandemia do coronavírus para “abusar disso [judicialização e criminalização] de uma forma muito maior do que vinha fazendo antes. A gente viu todos os aspectos, que a Vale demitiu muito trabalhador no começo da pandemia, aqui e em Minas”, contextualiza.
O militante salienta que as sentenças do juiz das 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Júnior, determinando o pagamento das indenizações, estabelecem que, para acessar a indenização, o atingido tem que abrir mão de todos os seus atuais e futuros direitos.
“Ele precisa abrir mão do cadastro e do lucro-cessante, ou seja, dar uma quitação geral pra empresa em relação ao crime, apesar de vários estudos dizerem que a lama não pareceu de descer, que não cessou”, expõe. Além de tudo isso, prossegue, “o atingido não pode sequer se manifestar mais”, repudia.
Honorários de R$ 450 mil
O protesto dos atingidos em Naque expôs reclamações contra o Sistema Indenizatório Simplificado (Novel), criado pela Renova e homologado pelo juiz Mário de Paula em julho de 2020, em comum acordo com as comissões de atingidos de Baixo Guandu (ES) e Naque, ambas representadas pela advogada Richardeny Luiza Lemke Ott.
A Pública lembra que, até fevereiro de 2020, Richardeny trabalhava como assessora jurídica da prefeitura de Baixo Guandu, e que abriu seu escritório de advocacia no dia dois de junho, um mês antes de ganhar a primeira ação como representante da comissão de atingidos do município. Na sentença que reconhece a Comissão de Atingidos de Baixo Guandu, o juiz estipulou honorário de R$ 450 mil ao escritório de Richardeny, a serem pagos pelas empresas rés.
Valores irrisórios
À época da criação da plataforma, o argumento era de que iria atender aos atingidos que possuem dificuldade de comprovação de danos pelo rompimento da barragem, como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais.
Mas, na prática, a Renova tem pressionado as vítimas que não têm dificuldade de comprovar o dano a aderir ao sistema. “A sentença é para quem não tem a documentação. Só que a Fundação Renova está trabalhando ao contrário. Ela quer forçar o atingido, todos eles, está ligando para eles, para forçar eles a aderirem ao processo”, contou à Pública a pecuarista Valeriana Gomes de Souza, da Comissão de Atingidos de Naque.
Até o último dia 19 de fevereiro, segundo a reportagem, 16 municípios já aderiram ao novo modelo, sendo nove no Espírito Santo e sete em Minas Gerais. De acordo com informações da Renova, do primeiro pagamento, em setembro do ano passado, a janeiro deste ano, mais de 5 mil pessoas receberam indenizações por meio desse método, ultrapassando R$ 435 milhões.
Ilegítimas
“Esses processos configuram abuso contra essas pessoas. Elas foram abusadas ao longo do tempo, foram se desesperando, perdendo a esperança de receber, pela demora na tramitação. E agora, depois de tanto tempo, estão dispostas a aceitar valores menores e irrisórios estabelecidos nessa matriz de dano”, declarou o procurador da República em São Paulo e integrante da Força -Tarefa, Edilson Vitorelli, em coletiva de imprensa realizada em outubro passado.
O valor de R$ 10 mil estabelecido na matriz do juiz Mário de Paula, comparou o procurador, se equipara às indenizações por danos morais pagas em casos de cancelamentos de voo. “Estamos comparando um transtorno de cancelamento de voo aos danos gerados pelo maior desastre ambiental do país”, exasperou.