A ciência reafirma suas explanações legais, ambientais e socioeconômicas em defesa do traçado mais adequado que deve ser adotado para a duplicação da BR-101 no trecho que atravessa a Reserva Biológica de Sooretama e sua área de amortecimento, em documento enviado no final de junho passado ao diretor de Licenciamento Ambiental do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Jônatas de Souza Trindade, assinado por 16 cientistas e ambientalistas com histórica atuação na região.
As considerações foram enviadas após análise da resposta da concessionária ECO 101 ao pedido feito pelo órgão licenciador, de complemento das alternativas locacionais apresentadas de forma insatisfatória pela concessionária em 2017.
O documento expõe a necessidade de reafirmar todas as considerações já feitas em manifestações anteriores, mediante o entendimento de que as complementações solicitadas pelo Ibama “não foram apresentadas” pela empresa e que “a ECO 101 informou, apoiada pela ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres], que a rodovia BR-101 será mantida e não será duplicada dentro da Rebio de Sooretama, e aguarda deliberação do Ibama quanto a isso”. Mais um fato, portanto, a reiterar a lamentável contradição entre o nome e a atuação da concessionária.
Na explanação, os pesquisadores ressaltam um aspecto “destacado pelos dois Planos de Manejo da Reserva”, de 1981 e 2019: o fato de que “o trajeto da rodovia dentro da reserva é ilegal desde sua construção nas décadas de 1960 e 1970”, feita quase trinta anos depois da criação da área protegida de Sooretama.
Um milhão de animais já morreram
Ambos os Planos apontam necessidade de resolver esse passivo, considerando que a BR-101 é, desde então, “a maior ameaça direta e indireta à conservação da megabiodiversidade do complexo de áreas protegidas de Linhares e Sooretama”, produzindo impactos diversos – como poluição, caça ilegal e incêndios – que afetam diretamente uma faixa de cinco quilômetros para o interior da floresta, incluindo os recursos hídricos, a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.
Somente o atropelamento de animais silvestres ocorre na ordem de 20 mil por ano, o que leva à estimativa de que cerca de um milhão de animais já morreram em decorrência da BR-101 desde que ela foi construída dentro da reserva e sua zona de amortecimento.
Respostas simplórias
Sem complementações em 2021, as alternativas locacionais feitas em 2017 pela ECO 101 apontam trajetos “simplórios”, avaliam os cientistas e ambientalistas, pois “não aproveitam as vias rodoviárias que já existem na região e passam no interior de áreas [outras] protegidas”.
O possível contorno a leste proposto na ocasião atropela uma área quase ou tão sensível quanto a Rebio Sooretama e as demais unidades protegidas contíguas a ela, que, juntas, formam o maior fragmento de Mata Atlântica de Tabuleiro do país, com 53 mil hectares, um
patrimônio natural de importância mundial.
Leste protegido
A leste da Reserva de Sooretama, localiza-se a bacia de drenagem do Rio Doce, “uma das maiores áreas de drenagem em foz de rio no Brasil”. “É uma área inundável, conhecida pelos problemas em épocas de cheias do Rio Doce, devido à ocupação humana incompatível com essa região”, alertam os cientistas, citando problemas enfrentados por “empreendimentos já consolidados na região [que] sofrem com essa situação, como a rodovia ES-358 e conjuntos habitacionais, com casas que deveriam ter sido entregues em 2012, mas que não foram por causa de problemas com alagamentos resultantes de questões naturais de drenagem do solo”.
A área, sublinha, é de extrema fragilidade socioambiental, devendo receber atenção do poder público para implementar a proteção ambiental já estabelecida em legislação, considerando desde leis nacionais quanto planos de manejos e outros regramentos específicos das suas áreas protegidas, entre elas, a Floresta Nacional (Flona) de Goytacazes; a Rebio Comboios; a Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) Degredo; as Reservas Naturais do Patrimônio Natural (RPPNs) Restingas de Aracruz, Recanto das Antas e Mutum Preto.
Todas essas unidades de conservação configuram ainda outros arranjos coletivos de proteção formalizados em instrumentos legais estaduais e nacionais, como o Corredor Ecológico Estadual Socomgo e o Mosaico Federal de UCs da Foz do Rio Doce. Além disso, a região é considerada Área de Extrema Prioridade para Conservação no Espírito Santo – Quaternário e Foz do Rio Doce e uma das Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade Brasileira.
Oeste degradado
A oeste da Rebio Sooretama, ao contrário, a ocupação humana intensificada é anterior à construção da BR e à criação da reserva, tendo sido favorecida na década de 1920, com a construção da ponte sobre o Rio Doce em Colatina. Mais recentemente, outras rodovias foram instaladas, incluindo estaduais e a BR-342 que está sendo construída ligando a BR-116 à BR-101, “ou seja, uma área já impactada por empreendimentos rodoviários em pavimentação e em construção que poderia ser melhor aproveitada pela BR-101”.
Tais aspectos foram apresentados em audiência pública realizada em novembro de 2019 em Linhares, onde, além de cientistas em defesa de Sooretama, também o prefeito Guerino Zanon defendeu uma alternativa locacional para a duplicação da BR que concilie, além da proteção de Sooretama, a retirada do fluxo da BR de dentro da zona urbana da cidade, de forma a preservar o trânsito local, bem como proteger as áreas produtoras de cacau, tradicionalmente existentes em formato cabruca, bem como o polo industrial do município.
Apesar da documentação que registra tais apontamentos passados, ressaltam os cientistas, a abordagem da ECO 101 sobre o contorno a leste, além de todos os confrontos com a legislação ambiental, também não considerou o Plano Diretor Municipal de Linhares. Já a possibilidade de contorno a oeste apresentada “é simplória, mantém a rodovia na zona urbana de Linhares e não foi estudada”.
‘É impossível mitigar, reparar ou compensar os danos’
Os pesquisadores e ambientalistas salientam ainda que “os impactos do funcionamento da rodovia BR-101 no cenário das áreas protegidas de Linhares e Sooretama não são mitigáveis, reparáveis e compensáveis” e que os dispositivos existentes hoje no mundo com esse objetivo, “se aplicados no cenário de Linhares e Sooretama, não serão capazes de garantir a efetiva conservação da megabiodiversidade deste complexo de áreas protegidas”.
As chamadas “passagens de fauna”, explicam, “não vão salvar a maioria das espécies ameaçadas (que possuem diferentes atributos ecológicos) da extinção nestas áreas protegidas, e dezenas de milhares de animais continuarão morrendo atropelados anualmente nestas áreas protegidas, se for mantido funcionando a rodovia BR-101 em seu interior”. Igualmente, “a criação de outras unidades de conservação não compensará a perda de biodiversidade nestas áreas que há décadas são protegidas”.
Medidas emergenciais não implementadas
Se não há possibilidade de mitigação, reparação ou compensação, as ações emergenciais acordadas entre a ECO 101 e o Ministério Público Federal (Recomendação nº 2/2018. Ref. PA nº1.17.004.000100/2017-08) em 2018, para reduzir os impactos da estrada sobre a floresta até que ela fosse retirada do interior da reserva e de sua zona de amortecimento, não foram implementadas, “exceto pela remoção de árvores exóticas frutíferas localizadas às margens da rodovia”, bem como “as recomendações do Ibama para o funcionamento da rodovia no trecho também não foram cumpridas”.
Vocações
Em síntese, os signatários das recomendações de cunho científico e socioambiental aduzem que “manter essa região [interior e entorno da Rebio Sooretama] servindo à rodovia BR-101, com seu alto fluxo de veículos, pessoas e cargas, será legar às gerações futuras muito menos da biodiversidade que recebemos daqueles que dedicaram seu trabalho a proteger essas áreas, e manterá em risco crescente os serviços ecossistêmicos prestados que sustentam as atividades produtivas humanas da região”.
Por outro lado, “realocar a BR-101 em uma região historicamente mais degradada, pode inclusive ser uma alternativa de eixo de desenvolvimento socioeconômico para esta região, enquanto preserva os atributos e os serviços ecossistêmicos da região leste que também são importantes às atividades humanas e econômicas do Espírito Santo”.
Tramitação
Os argumentos expostos no documento de junho deste ano reforçam outras manifestações, incluindo o
parecer emitido pela Rebio de Sooretama em maio de 2018, mas que não consta no processo – nº02001.003438/2014-79 – contrariando, portanto, o Decreto Federal nº 4340/2002, ao estabelecer que compete ao conselho de unidade de conservação “manifestar-se sobre obra ou atividade potencialmente causadora de impacto na unidade de conservação, em sua zona de amortecimento, mosaicos ou corredores ecológicos”.
Para Da Vitória, conforme já manifestado em ocasiões anteriores, o trecho de 25 quilômetros localizado dentro da Reserva de Sooretama deveria ser separado do licenciamento ambiental do restante da rodovia no norte do Espírito Santo, para que as obras, finalmente, possam sair do papel.
“Desde 2013, início da vigência desse contrato, temos a quebra dos prazos para as obras da duplicação. E agora temos um absurdo, que é uma parte do norte do Estado, que já deveria estar avançado na duplicação, e que não pode ser duplicado por causa dos 25 quilômetros que ficam dentro da Reserva de Sooretama. São aproximadamente 200 quilômetros e por causa dessa parte vai se suspender toda a duplicação do norte?”, indagou o parlamentar, na ocasião da aprovação de sua proposta de audiência pública.