Protesto alertou sobre ameaças ao Santuário das Neves, à pesca, às mulheres e ao meio ambiente da região
O que acontecerá com a segunda maior festividade religiosa do Espírito Santo, a Romaria das Neves, se o Porto Central for construído na foz do rio Itabapoana, como consta no projeto do megaempreendimento, orçado em R$ 5 bilhões?
O questionamento foi feito por militantes da Campanha Nem Um Poço a Mais nesta sexta e sábado (4 e 5) durante a Romaria das Neves, que anualmente atrai dezenas de milhares de fiéis do sul do Espírito Santo e norte do Rio de Janeiro até o Santuário das Neves, em Presidente Kennedy, extremo-sul do Estado, patrimônio histórico e cultural administrado pela Diocese de Cachoeiro de Itapemirim sobre a singela e centenária igreja construída no século XVII.
Munidos de faixas, cartazes, panfletos e abaixo-assinado, os manifestantes expuseram os riscos que o porto representa para tradição religiosa, para os bens naturais do seu entorno, como a restinga e os alagados, e também para a pesca artesanal e para as mulheres e meninas da região.
“Somos contra a Licença de Instalação da Fase 1 dada pelo Ibama ao Porto Central! O Santuário das Neves está diretamente ameaçado com a construção do porto que pretende ilhar este patrimônio. Pescadores e comunidades não tiveram direito a consulta prévia, livre, informada e de boa fé! Não há medidas que compensem a destruição das práticas culturais no Patrimônio das Neves, nem para o fim da pesca e nem para as próximas gerações que vivem nos territórios que serão impactados pelo porto. Nós, abaixo assinados, dizemos NÃO AO PORTO CENTRAL!”, afirma a petição, que teve grande adesão entre os romeiros, segundo relatam os ativistas.
“A impressão que a gente tem é que eles [os romeiros] não sabem do que está acontecendo. As pessoas não estão informadas. Não sabem sobre a instalação do porto, a ameaça ao Santuário, o corte de restinga. E quando a gente fala sobre isso, elas ficam indignadas. Assinam e chamam outros familiares para assinar também. E não é somente pela festa, as barracas, os comerciantes, é porque não querem ver a área toda devastada. Citam a restinga, os alagados, o espaço livre das pessoas, o respeito ao modo de vida local, à cultura. Não tem uma pessoa que não fale da restinga que vai ser desmatada e que protege o Santuário. Eles assinam e daqui a pouco trazem o vô, a tia, o filho para assinar também”, relata Flavia Bernardes, educadora da Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), uma das dezenas de entidades a comporem a Campanha.
“Vimos pessoas com mais de 70 anos de idade e que vêm aqui desde criança. Estão muito receosos, mas também com muita esperança de que o porto não vai acontecer. Muito pelo fato de não estarem sendo informados: ‘se não chegou até a gente a informação, é porque não vai acontecer’, mas muito também pela fé de que nada pode destruir o santuário e a romaria”, pondera.
Também educadora da Fase, Daniela Meireles tem percepções semelhantes. “Muitas pessoas nos agradeceram pelas informações, pois não tinham ideia do projeto do porto. Pegam nosso material e querem levar para casa, para discutir em família. A recepção ao abaixo-assinado tem sido muito boa. As pessoas estão muito indignadas e a adesão está muito grande”, afirma.
O panfleto traz os alertas sobre os impactos que um empreendimento dessa magnitude traz para o território, incluindo um infográfico mostrando toda a estrutura que se pretende construir, enclausurando o centenário Santuário.
“Para se instalar, conseguiram isenção de impostos federal, estadual e municipal e portanto não gerarão riqueza. Afinal, que tipo de desenvolvimento está sendo proposto? Para quê, e para quem? Ainda dá tempo. Vamos salvar a fé, o pescado e a pesca artesanal, a mata atlântica e a água, as meninas e as mulheres. É possível viver bem sem porto. Nem um porto a mais!”, convoca a Campanha no panfleto.
Ambas educadoras ressaltam o quanto a estrutura da festa foi ampliada este ano pela Prefeitura Municipal de Presidente Kennedy, que chegou a instalar um grande portal na entrada do local onde os romeiros se concentram ao longo dos vários dias de programação religiosa e cultural. “O portal, a estrutura para as missas, os banheiros … tudo muito maior esse ano”, observa Daniela.
O apoio aos protestos da campanha, no entanto, foi inversamente proporcional, como registra o professor do Instituto Federal Fluminense (IFF) de Bom Jesus do Itabapoana, na divisa com o Espírito Santo, e vice-coordenador da ONG Reflorestamento (Redi), Carlos Freitas. Ele conta no ano passado, o bispo Dom Luiz Fernando Lisboa não fez qualquer oposição ao protesto semelhante que a Campanha realizou durante a festa. Mas este ano, com o Bispo participando da Jornada Mundial da Juventude, em Portugal, o padre que o substituiu, relata Carlos, abriu mão de opinar sobre o uso do espaço imediatamente fora da cerca que envolve a igreja, afirmando que era organizado pela comunidade.
“Nós colocamos nossos cartazes, cruzes e velas no mesmo lugar do ano passado e uma pessoa começou a retirar tudo. Quando questionei, vi que é um líder comunitário de Jaqueira, em Presidente Kennedy. Ele não aceitou a nossa manifestação. Então nós fizemos o protesto segurando as velas e cruzes ao invés de deixa-las no chão”, relata.
A comunidade de Jaqueira é a mesma que recebeu a reunião final da série de treze encontros realizados em julho pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), relativos à Licença de Instalação (LI) nº 1436/2023 emitida em maio, a primeira das cinco previstas no licenciamento ambiental. “A reunião final não foi em Marobá, que é uma comunidade de pescadores onde o porto vai se instalar. Foi em Jaqueira”, pontua o ambientalista.
Na ocasião, Carlos Freitas questionou o descaso do Ibama com as condicionantes socioambientais. “Os investidores do Porto Central já sabem quanto vão ganhar. Mas os pescadores daqui não sabem quanto vão perder. Por que não se faz essa conta para o pescador? Sou contra dar a licença enquanto os pescadores não souberem o que eles vão efetivamente levar de prejuízo. Não pode ser dessa forma. As pessoas que estão aqui sofrem, vocês enchem o bolso e o prejuízo e o passivo ficam para nós. Aí é fácil instalar e ganhar dinheiro. Ibama, ouça as pessoas, vocês estão ouvindo só os empreendedores”, disse, ao final da reunião, quando os microfones foram abertos para a comunidade.
Durante a missa principal da programação, na manhã deste sábado, o padre responsável pelos trabalhos, diante das faixas e cartazes da campanha, abordou o tema do porto central de forma genérica. Um vídeo caseiro enviado à reportagem permite distinguir alguns trechos de sua fala.
“Nós queremos nos comprometer com todo o processo de desenvolvimento desse município e desse espaço. Que esse novo porto não seja uma fonte de desrespeito à vida, uma afronta à dignidade das pessoas, que não seja construído sem levar em conta a responsabilidade ecológica”. Em outro momento, se refere ao local como “o porto da salvação, que esse espaço que ao longo de tantos séculos tem sido”, invoca que ele seja também um “porto de abundância de vida e respeito” e roga afirmando que “nós queremos continuar vindo aqui, reconhecendo que esse porto nos pertence”.
Em reportagem publicada pelo jornal ((o))eco nesta terça-feira (1), o advogado José Irineu, membro da Comissão de Cultura e Patrimônio da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, onde presta auxílio jurídico voluntário, contou que o diálogo com o Porto Central não acontece desde 2022. “Há mais de um ano que a Diocese não é convidada para qualquer reunião”, afirma. E isso, sem qualquer definição das salvaguardas solicitadas. “O projeto de macrodrenagem não foi apresentado. Soubemos que será feito um aterro de cinco metros, o que vai deixar o Santuário dentro de um buraco!”, alertou.
“A área em volta da Igreja das Neves tem 14 hectares, nos disseram que irão doar mais x hectares para ser reflorestado, mas não temos esse projeto, não sabemos se o reflorestamento vai ser suficiente. Não queremos ser empecilho para o desenvolvimento, mas não podemos permitir que um patrimônio que a Igreja administra seja abandonado”, acrescentou.