Comunidade é a única com Assessoria Técnica e conquistou projeto de água encanada como compensação
A Samarco/Vale-BHP foi condenada pela Justiça Federal a manter o fornecimento de água potável para a comunidade quilombola de Degredo, em Linhares, norte do Estado. A decisão foi anunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) nesta segunda-feira (29), e refere-se à decisão da Quinta Turma do Tribunal Regional Federal (TRF1), que reformou mais uma sentença do ex-juiz da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Junior, atualmente atuando no Amapá, na região amazônica.
Com relatoria da desembargadora federal Daniele Maranhão, a decisão da Corte Federal atendeu, por unanimidade, os recursos de apelação interpostos em maio de 2020 de forma conjunta pelo MPF, Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público e Defensoria do Espírito Santo (MPES e DPES) e Ministério Público e Defensoria de Minas Gerais (MPMG).
A apelação expõe as contestações feitas pelas instituições de justiça em relação à decisão do ex-magistrado de Belo Horizonte que havia atendido aos pedidos formulados pela Samarco para que ela ficasse desobrigada de fornecer água potável à comunidade – cinco litros por pessoa por dia – e de sofrer cobrança das multas punitiva e diária.
Ambas determinações foram estabelecidas pela Deliberação nº 534/2021 do Comitê Interfederativo (CIF), instância criada em março de 2016 para centralizar a governança e fiscalização das ações executadas pela Fundação Renova voltadas à reparação e compensação dos danos oriundos do rompimento da Barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP em novembro de 2015.
O pedido de desobrigação, no entanto, foi feito pela Samarco por meio de um Incidente de Divergência de Interpretação do Cumprimento do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC) e TAC Governança, estabelecido em agosto de 2018. Essa improcedência legal, ignorada pelo juiz Mário de Paula, foi apontada pelos órgãos de justiça e aceita pela Quinta Turma do TRF1.
“As deliberações do CIF impuseram à Fundação Renova a obrigação de fornecer água à comunidade até que reste comprovada de forma inconteste a ausência de nexo causal entre os problemas da comunidade no acesso a esse recurso e a tragédia”, sublinhou o MPF ao anunciar a vitória judicial.
Com a reforma da sentença, fica restabelecida a exigibilidade de multa punitiva no valor de R$ 50 mil em caso de descumprimento, além de multa diária de R$ 10 mil por dia de atraso no fornecimento de água para a comunidade.
Abastecimento ininterrupto
Em paralelo à ação impetrada pelos ministérios e defensorias públicas, a própria comunidade também buscou medidas extrajudiciais. Em janeiro, havia conseguido fechar mais um acordo para garantir que não houvesse nova interrupção no abastecimento da comunidade, como a Renova vinha anunciando no final de 2021 e já havia ocorrido anteriormente, quando os moradores chegaram a ficar duas semanas sem água.
O acordo é no valor de R$ 2 milhões e foi firmado entre a Fundação e a Associação dos Pescadores e Extrativistas e Remanescentes de Quilombo do Degredo (ASPERQD), entidade criada há 17 anos para lutar pelos direitos da comunidade, tendo inclusive alcançado a certificação quilombola junto à Fundação Cultural Palmares, do governo federal.
Após o crime da Samarco/Vale-BHP, a entidade lutou para defender as medidas de compensação e reparação dentro da comunidade, tendo sido contratada em 2020 como Assessoria Técnica Independente (ATI), a primeira e até agora única entre os territórios atingidos no Espírito Santo. O objetivo, ressalta, é “acompanhar de perto e ‘de dentro’ os programas da Fundação Renova e o Plano Básico Ambiental Quilombola – PBAQ”.
Um dos projetos estabelecidos no PBAQ é a construção de um Serviço de Abastecimento de Água (SAA). Em abril, foi assinado um Acordo de Cooperação entre a Renova e a Prefeitura de Linhares, com o valor de R$ 10 milhões. Após a conclusão das obras, o SAA ficará sob gestão do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE). O poço artesiano onde será feita a captação da água bruta já foi finalizado e teve a qualidade da água aprovada.
Essas e outras conquistas da comunidade resultam diretamente da ATI implementada pela associação, ressalta Simony, Relações Institucionais da associação. “Não só pelo fato de ter uma ATI, mas também de ser uma assessoria técnica com gestão local, feita por comunitários. Nós não deixamos de fazer a briga judicial, mas só ela não é suficiente, senão estaríamos há meses sem água. Como a assessoria é daqui do território, a gente sabe as necessidades e as urgências, e corre atrás de todas as formas possíveis”, aponta, ressaltando uma palavra de ordem da entidade: “O direito se concretizará com a chegada da água tratada nas torneiras de cada morador do Degredo!!”
A decisão judicial, aparentemente tardia, no entanto, é fundamental para fortalecer a luta em campo. “Fortalece, porque o acordo é para 22 meses de fornecimento de água, o tempo previsto de concluir o SAA. Mas a obra está atrasada, então é possível que a gente precise de galões de água por mais tempo”, conta, destacando a dificuldade que a associação enfrenta para acompanhar o cronograma, devido à falta de transparência da Fundação Renova em fazer a prestação de contas. “Ela não nos diz o que já foi feito e o que já foi gasto, mas sabemos que está atrasado no mínimo oito meses”.
Além disso, o acordo também tem outras falhas. Fechado no valor de R$ 2 milhões, não considera o aumento do preço da água, já sentido pela associação, tampouco a substituição de galões que venham a ser quebrados no período. “Foi um acordo bom porque manteve o abastecimento ininterrupto e também aumentou a quantidade diária de água por pessoa, de cinco para quinze litros, mas tem essas falhas”, reforça.
O PBAQ prevê ainda a construção de biodigestores para tratamento individual dos esgotos das casas. “Também vamos fazer capacitação para os próprios comunitários construírem os biodigestores, o que pode ser uma geração de emprego também, para fazer em outras comunidades que quiserem”, conta a Relações Institucionais, com a expectativa de que a verba para essa ação também seja alcançada em breve.
Água contaminada
Antes do crime das mineradoras contra o Rio Doce, os moradores de Degredo obtinham água potável por meio de poços individuais e cacimbas. Os rejeitos de mineração lançados sobre o Rio Doce e litoral capixaba, no entanto, contaminaram o lençol freático sob o território e o rio Ipiranga, que atravessa a comunidade e deságua próximo, na praia de Urussuquara, limite com São Mateus. Na época, foi constatada a contaminação de 80% dos poços e cacimbas com metais como arsênio. Mas somente em 2018, que a Renova passou a fornecer água para beber e cozinhar.
No final de 2021, um grupo de técnicos, pesquisadores e moradores de Degredo realizou uma análise das lagoas e rios da região. As amostras foram enviadas para um Laboratório de Análises Agronômicas e Ambientais, e detectaram a presença na água de alto nível de ferro, além de acidez e ausência de oxigênio.
Neste mês de agosto, a Aecom do Brasil Ltda tornou público o primeiro relatório oficial a respeito da segurança do consumo de pescado na bacia do Rio Doce, em sua foz e no litoral capixaba, e concluiu que o nível de contaminação é grave, havendo provas de nexo de causalidade com o rompimento da Barragem da Samarco/Vale-BHP para dois contaminantes avaliados.
A Aecom foi nomeada em março de 2020 como perito oficial pelo juiz federal Mario de Paula Franco Junior, sendo responsável pela “avaliação da segurança do alimento, direcionada para o consumo do pescado no Rio Doce, desde o Estado de Minas Gerais até a foz e região marítima do Espírito Santo, bem como dos produtos agropecuários irrigados com água do Rio Doce”.
É o fim da pesca no Rio Doce e litoral capixaba?
https://www.seculodiario.com.br/meio-ambiente/e-o-fim-da-pesca-no-rio-doce-e-no-litoral-capixaba