Movimento e Defensoria Pública reivindicam formalização da Mesa de Conflitos Fundiários por meio de decreto
A iminência de novos despejos de famílias acampadas em áreas reivindicadas para a reforma agrária, prevista na Constituição Federal, pode suscitar novas ocupações de terras no Espírito Santo.
Atualmente, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Estado (MST/ES), existem oito acampamentos ativos com 800 famílias ou cerca de cinco mil pessoas – todos eles com pedidos de reintegração de posse pelo agronegócio. “Se despejar essas famílias, elas não têm para onde ir, então só nos resta fazer novas ocupações, seja em áreas do agronegócio, seja em áreas públicas abandonadas, que não cumpram a função social”, explica Rodrigo Gonçalves, da coordenação estadual do MST.
“Com a lentidão da reforma agrária no Brasil e no Estado, não descartamos a possibilidade de fazer ocupação. Temos famílias que estão há mais de uma década acampadas, sem resposta dos governos do Estado e federal”, expõe, informando que o último assentamento feito no Espírito Santo foi há nove anos, pelo governo federal, e há trinta anos, pelo governo estadual – Adão Preto e Carlos Lamarca, ambos em terras públicas de Nova Venécia, no noroeste do Estado.
A situação, que nunca foi favorável às famílias sem terra e ao cumprimento da previsão constitucional de reforma agrária, ficou ainda mais difícil após o impeachment contra Dilma Roussef (PT) e a crescente criminalização do movimento, e, mais ainda, após a chegada de Jair Bolsonaro (sem partido) à presidência da República.
“Primeiro, o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] tem uma orientação política do governo federal de não dialogar com movimentos sociais sobre reforma agrária. Segundo, o Incra está sendo sucateado, com falta de orçamento, em especial para vistoria, que é o primeiro passo pra iniciar o processo de reforma agrária. E terceiro, o governo só tem orçamento para privatizar os assentamentos, com as titulações individuais”, aponta Rodrigo Gonçalves, citando, no Espírito Santo, as titulações entregues a assentados do Sezínio e Rio Quartel, em Linhares, norte do Estado, e Pipnuck, em Nova Venécia.
A privatização dos assentamentos, por meio das titulações individuais, tem sido priorizada pelo governo federal desde 2017, com a publicação da Instrução Normativa nº 87/2017, com “planilhas de preços referenciais para fins de titulação”, sob o pretexto de oferecer segurança jurídica às famílias assentadas.
Mas a segurança jurídica que as famílias têm direito não vem dos títulos individuais de propriedade, mas sim das políticas públicas já previstas na Constituição Federal, tais como: crédito agrícola diferenciado, habitação, políticas para mulheres (Fomento Mulher), infraestrutura (poço artesiano, estrada) e escolas do campo. “O título tira a responsabilidade do órgão frente a esses políticas”, explica.
Sob o fogo cruzado imposto por Bolsonaro aos movimentos sociais do campo e da cidade, o MST entende que deve partir do governo do Estado a iniciativa de tirar a reforma agrária da inércia. “Tem que criar alternativa. E não é falta de terra, terra tem demais. O Espírito Santo tem áreas que dariam para assentar todas as famílias sem terra”, afirma.
Decreto estadual
Uma das ações imediatas no Espírito Santo, reivindica, é a transformação da Portaria nº 037/2020 em decreto estadual. Criado em agosto do ano passado pela secretária de Estado de Direitos Humanos (Sedh), Nara Borgo, a portaria instituiu a Comissão Permanente de Conciliação e Acompanhamento dos Conflitos Fundiários no âmbito do Estado do Espírito Santo (CPCACF).
“Com o decreto, a Comissão vai ter um pouco mais de segurança jurídica para os próximos governos”, pondera. A demanda também é da Defensoria Pública Estadual (DPES), e pelo mesmo motivo. “O ideal seria a transformação em lei, mas não seria aprovada pela Assembleia Legislativa atual”, avalia o defensor Vinícius Lamego.
Novas ocupações em todo o país
A posição da direção estadual segue a diretiva nacional do MST, que recentemente anunciou a retomada de ocupações, possivelmente, como noticiou o jornal Folha de S.Paulo, uma em cada estado, no mínimo, a partir deste último trimestre do ano.
A reportagem contrapõe falas de Jair Bolsonaro e dos dirigentes do MST. O presidente, afirma a Folha, alega que a redução do número de ocupações em seu governo se deve ao corte de dinheiro para ONGs “que supostamente era direcionado para o movimento” e à distribuição dos famigerados títulos de propriedade. Os números, do governo federal dão conta de que “houve 14 ocupações de 2019 até abril de 2021. De 2016 a 2018, foram 111. De 2011 a 2015, 912. De 2003 a 2010, 1.968. De 1995 a 2002, 2.442”.
Ao jornal, no entanto, o MST explica que a redução das ocupações foi resultado principalmente do menor número de assentamentos criados desde o começo do governo Dilma, “o que prejudica o trabalho de base”; das mudanças no Incra e os cortes na reforma agrária durante a administração Michel Temer (MDB); e, por fim, do discurso agressivo de Bolsonaro contra os sem terra.
“Os posicionamentos públicos de Bolsonaro sobre o MST fizeram com que os latinfundiários assumissem postura mais violenta em relação aos sem terra, o que levou o movimento a tomar a decisão de manter as ocupações existentes e ser cauteloso para não expor seus membros a riscos”, afirma o MST.
Diretrizes nacionais
A Comissão Permanente de Conciliação e Acompanhamento dos Conflitos Fundiários no âmbito do Espírito Santo (CPCACF) tem atribuição principal de “promover a conciliação dos conflitos fundiários no campo e na cidade e assegurar que os atos de reintegração de posse determinados pelo Poder Judiciário não venham, no mesmo ato em que reafirmam direitos de uma parte, a acarretar violações dos direitos fundamentais da outra parte, muito em especial (embora não exclusivamente) na medida em que envolvam pessoas em situação de vulnerabilidade”.
As diretrizes de atuação incluem a preservação do direito à vida e da dignidade humana; a observância dos direitos sociais à moradia e ao trabalho; e a observância da função social da cidade e da propriedade.
É coordenada pela SEDH e composta por outras dez instituições do governo, incluindo secretarias, autarquias e Polícia Militar, abrangendo ainda instituições convidadas, como o Incra, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministérios Públicos Federal e Estadual (MPF e MPES), Defensorias Públicas da União e do Estado (DPU e DPES), Assembleia Legislativa, Tribunal de Justiça do Estado (TJES) e Conselho Tutelar; além de “outros órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, que possam contribuir para o desenvolvimento dos trabalhos; e integrantes das ocupações, entidades e outras partes interessadas, inclusive os proprietários dos imóveis e/ou terrenos em situação de conflito, que por sua experiência profissional ou institucional, possam contribuir para o desenvolvimento dos trabalhos”.
A atuação da Comissão deve se pautar pelo Manual de Diretrizes Nacionais para Execução de Mandados Judiciais de Manutenção e Reintegração de Posse Coletiva, promulgado em 2008 pelo Departamento de Ouvidoria Agrária e Mediação de Conflitos (DOAMC) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e também pela Resolução nº 10/2018 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH).
Diante de um conflito fundiário, qualquer parte interessada ou órgão participante pode solicitar atuação da Comissão e, uma vez demandada, ela tem prazo máximo de quinze dias para responder informando as medidas que serão tomadas para o tratamento adequado do conflito.