Pescadores obtêm compromisso de vereadores com audiência pública para discutir legislação que criminaliza a pesca
Se quiserem que os pescadores artesanais participem da procissão marítima em homenagem a São Pedro, no dia dois de julho, os legisladores e gestores de Vitória terão que dar agilidade ao trabalho de adequação da legislação que hoje criminaliza a profissão. A mensagem foi transmitida de viva voz aos vereadores nesta quarta-feira (21), após amplo debate realizado com uma comitiva de dezenas de pescadores, que lotaram as galerias da Câmara Municipal com faixas pedindo socorro.
“Só vai ter a participação do pescador quando ele voltar a trabalhar. A fome tem pressa. Nós não somos bandidos, somos pessoas honestas e educadas. Não vamos sair daqui para parar rua, para parar ônibus, onde só tem trabalhador, muitas vezes até em situação pior que a gente. A nossa posição está mantida, demos o primeiro passo, que foi garantir essa audiência pública com vocês, mas se quiserem que a procissão role, resolvam o nosso problema, libera nós para trabalhar”, declarou o presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), João Carlos Gomes da Fonseca, o Lambisgoia, diante de todo o grupo reunido no gramado em frente à Prefeitura.
O objetivo da manifestação foi explicar o emaranhado de normativas que trazem restrições divergentes sobre a atividade e que lançam milhares de famílias a condições indignas de falta de renda e de perspectiva para as futuras gerações. Duas áreas são prioridade para os trabalhadores: a baía de Camburi, para a pesca de peixes com rede, e o pesqueiro de camarão próximo ao Porto de Tubarão. Ambos foram alvo de uma operação conjunta de fiscalização no dia seis de junho, em que vários barcos e redes foram apreendidos e pescadores multados.
O ato angariou manifestações de apoio de boa parte do legislativo, tanto dentro do plenário quanto do lado de fora do prédio, com discursos exaltando posturas comprometidas em proteger o meio ambiente e também a pesca artesanal.
Vídeos compartilhados nas redes sociais mostram a mobilização de variados mandatos, incluindo o presidente da Câmara, Leandro Piquet (Republicanos), Karla Coser (PT), que participou da reunião dos pescadores com os órgãos ambientais e de Justiça na segunda-feira (19), e Luiz Emanuel (Republicanos), autor da lei municipal que os pescadores pleiteiam ser modificada. Aloisio Varejão (PSB), Anderson Goggi (PP), Andre Brandino (PSC), Chico Hosken (Podemos) e Luiz Paulo Amorim (Cidadania) também aparecem participando das falas finais, do lado de fora do prédio.
No plenário, vídeos mais compartilhados destacam as falas de Vinicius Simões (Cidadania) e André Moreira (Psol).
“Nó somos a favor do meio ambiente, de proteger as tartarugas, mas não é justo deixar os pescadores quinze dias sem trabalhar. Vocês não estão querendo matar tartaruga, vocês não saem de casa dizendo: ‘eu vou matar tartaruga hoje’. A pesca em Vitória é algo cultural e de vocação da cidade. Vivemos numa cidade cercada pelo mar. A pesca é tradição, é cultura do povo. A pesca inclusive resgata jovens que poderiam estar indo para o mundo do crime, mas estão indo para a atividade de pesca, melhorar a vida deles e ter um futuro melhor. Prefeito de Vitória, que tentou impedir os ambulantes de trabalharem na Curva da Jurema, que tentou impedir os ambulantes de trabalharem na Vila Rubim, não impeça as pessoas de trabalharem dentro da legalidade! Porque a angústia que estes trabalhadores estão passando é enorme! Falta vontade política para solucionar essa questão. Pescadores: o bom governo e a boa sociedade é aquela que preserva as tartarugas e que garante o trabalho das pessoas. Vocês estão mantendo o trabalho de pescadores que já morreram e que fizerem história nessa cidade na cultura da pesca”, declarou Vinicius Simões.
“No momento da constituição dessa legislação [Lei municipal 9707/2017], se a gente tivesse conseguido entender a necessidade de cada parte, hoje não estaria tendo que fazer isso na pressa, na correria. Pelo Comitê [Comitê Estadual de Gestão Compartilhada para o Desenvolvimento Sustentável da Pesca (Compesca)], eu recebo informação de que é possível fazer a compatibilidade da proteção do meio ambiente e da atividade de pesca. Dentro dessa condição, contem com o mandato na preservação do meio ambiente e na defesa da classe trabalhadora”, defendeu André Moreira.
“Mesmo que a pesca fosse impedida de uma forma definitiva, era necessário haver um trabalho de qualificação para novas atividades, um redirecionamento da pesca para outro tipo de pesca e eventualmente uma indenização para os que não pudessem fazer nenhuma dessas duas coisas. É assim que se trata a questão da pesca. Vitória é a única cidade ilha que infelizmente proibiu a pesca artesanal, quando deveria ter sido declarado talvez um patrimônio imaterial da cidade. Estou com vocês e com as tartarugas e isso para mim não é uma incompatibilidade”, complementou.
Ao final das falas das autoridades, o presidente do Sindicato arrematou: “Já chegaram sete lanchas novas para autuar os pescadores e estão fazendo isso o tempo todo. Já são quinze dias sem trabalhar. Deixa a gente trabalhar para tirar o de comer. Pescador tem fome! A procissão está na mão de vocês!”, disse, direcionando-se aos vereadores que assistiam.
União
Um dos participantes da comitiva de pescadores, o camaroeiro Alzemir Rosa Miranda Ramos ressalta a importância de afirmar a união de toda a classe pescadora de Vitória, que tem recebido apoio de trabalhadores de várias partes do Estado e até de outros estados, tamanha a relevância do pleito, que é descriminalizar a profissão na capital capixaba. “Estamos unidos, com colegas de norte a sul do Estado nos apoiando”.
Pesquisador das leis, Alzemir explica que as duas portarias do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a lei municipal nº 9077/2017, utilizadas na operação conjunta de fiscalização do dia seis de junho, precisam simplificadas, para que os pescadores e os órgãos possam trabalhar em harmonia.
As duas portarias, sugere, podem ser transformadas em uma só e a lei municipal precisa incluir autorizações para a pesca artesanal sob condições específicas, integradas com a Área de Proteção Ambiental (APA) Baía das Tartarugas, sendo a pesca assistida a solução mais viável, conforme já propôs o Compesca.
Alzemir destaca os artigos 2º e 3º da Portaria nº 17/2008, que, juntos, permitem algumas situações de pesca. “Barcos acima de dez metros podem pescar depois de três milhas da costa. Barcos menores que dez metros podem pescar entre mil metros e três milhas da costa”.
Já a Portaria nº 254-N de 1989, em parágrafo único, traz outra exceção de trabalho. “Autoriza a pesca de 19h às 7h para o pessoal das redes, com arrasto de praia, sem puxar a rede com barco. Ou seja, por essa portaria, os canoeiros não estão proibidos de pescar”, explica.
Mas mesmo essas aberturas já previstas nas portarias precisam de adequação à realidade da cidade de Vitória. “Para o pessoal da Ilha das Caieiras, essa pesca sem embarcação só funciona no verão, quando os peixes se aproximam da praia, tainha, outros peixes grandes. Fora dessa época, eles só conseguem pouca coisa, peixes pequenos. Eles já fazem um tipo de pesca assistida, só precisa orientar direito, chegar todo mundo num acordo”, defende.
Alzemir relata ainda que essa operação do dia seis de junho foi feita de forma covarde, na avaliação dos pescadores. “Eles juntaram as lanchas tudo na calada da noite, Polícia Federal, Ibama, Semmam, Polícia Ambiental e Capitania dos Portos. Saíram às duas horas da manhã para fazer uma armadilha para os pecadores no alto-mar! Quando o que eles deveriam fazer é se aproximar da população pesqueira na semana do meio ambiente, fazer discussões sobre pesca assistida e não predatória, um tipo de congresso, aí então teríamos uma coisa muito mais produtiva do que essa coisa feia que fizeram, pescadores presos, autuados como se bandidos fossem”, desabafa.
Outra informação que circula entre os pescadores é que as lanchas teriam sido doadas pela Fundação Renova, como parte da compensação pelo crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce em 2015, na parte dos recursos que foram direcionados para a APA Baía das Tartarugas. “O pessoal do Ibama fala para a gente que agora que eles estão com embarcações novas, não podem prevaricar, têm que trabalhar diuturnamente e autuar todos os pescadores que estiverem no mar”.
Navios
A possível entrada da Renova no caso levanta uma questão antiga: os desmandos da mineradora e dos portos, sempre abonados pelos órgãos gestores, numa complacência que se contrapõe à violência com que os pescadores artesanais de Vitória são alvo de proibições, fiscalizações e criminalizações.
“É muito fácil tirar os pescadores do mar e deixar os navios, que poluem 100 vezes mais do que qualquer pescador. E a cada dia aumenta o número de navios, ainda mais agora que eles estão produção represada por conta da pandemia. Eles querem bater meta de produção e o pescador está incomodando, porque trabalha na área que eles já intitulam como área deles, de fundeio de navios. Seria melhor eles fundearem os navios mais para fora e deixar o pescador na área que já é de pesca desde os nossos antepassados”.
O camaroeiro denuncia ainda que nenhum órgão ambiental enxerga os problemas que o porto e os navios causam não só aos pescadores, mas ao meio ambiente. “Já temos a problemática dos navios que estão em cima do nosso pesqueiro. A Vale tomou uma área centenária de pesca, passada de geração para geração. Nosso pesqueiro está invadido por navios. E por fora do porto, tem o ‘bota-fora’ onde eles colocam todo o rejeito tirado para aumentar o canal. A Codesa fez muita explosão para aprofundar o canal do Porto de Vitória. Explodiram tudo, até a terceira ponte, para passar navios. Tudo com anuência da Seama, do Iema… os prédios ali do Centro de Vitória até entraram com abaixo-assinado. Em 2017, 2018, mesma época da lei que proibiu a pesca artesanal. Matou muito peixe, muita tartaruga com essas explosões. E esses rejeitos eram sugados por uma draga, jogados numa balsa e levados a três milhas de Tubarão, onde eles querem que a gente pesque. Ali tem lama, resto de ferro, pedra, é muita sujeira. Nessa época também fizeram explosões no canal de Tubarão e jogaram lá também nesse bota-fora. Pescador em nenhum momento foi consultado sobre isso”.
A grande mobilização dos trabalhadores da pesca que se formou em protesto à operação “covarde” do dia seis, pondera Alzemir, pode começar a mudar essa inviabilização histórica a que a pesca artesanal vem sendo submetida, por força do poder político e econômico dos portos e da Vale.
“Estamos caminhando para uma discussão pacífica, para uma abertura de reavaliação dessas portarias e da lei municipal. Quem fez a lei municipal não procurou os pescadores, não houve debate público para ficar bom para todo mundo. Estamos querendo preservar o meio ambiente, queremos que as futuras gerações comam lagosta, peixe e camarão como nós. A gente quer mudar o jogo, fazer parte do diálogo, não quer enfrentar ninguém. Vamos debater em cima das leis que já existem. A gente está lutando por uma situação que a gente tem certeza que não vamos prejudicar o meio ambiente, como nunca prejudicamos”.
Quem tem fome tem pressa
Alzemir explica que os encaminhamentos até o momento são no sentido de uma audiência pública entre os dias 27 e 29 de junho na Câmara de Vereadores, onde a adequação da lei municipal será discutida, com base também nas portarias federais. A sanção de uma nova lei, portanto, tende a acontecer muito depois da Festa de São Pedro, por isso, infelizmente, os pescadores acreditam que a procissão marítima deve acontecer sem a participação dos trabalhadores.
“O Ibama disse que não vai prevaricar, que não vai deixar de autuar enquanto a lei estiver vigente. Então, a gente só vai conseguir voltar a trabalhar depois que mudarem a lei. Nós não somos ingênuos, não vivemos em conto de fadas, a gente não tem ilusão de que vai conseguir resolver tudo antes da procissão. 99% de chance de que o pescador não vai participar”, lamenta.
Após a garantia de que uma nova normativa irá conciliar a pesca artesanal com as finalidades de conservação da APA, será preciso ainda encontrar uma solução emergencial para os pescadores que estão sem poder trabalhar e passando necessidade. “Nenhum pescador quer viver de cesta básica. Falaram isso agora, de doar, mas não é essa a solução. Depois que tudo estiver esclarecido, havendo sinalização forte por parte do Executivo e do Legislativo que a mudança da lei vai acontecer e quanto tempo isso vai levar, é viável um debate em cima de um apoio financeiro, porque há muitas pessoas sem comida, sem gás, já”.
“Estamos unidos. O pescador vai passar a ser reconhecido como trabalhador. Sempre falam ‘ah, é pescador’, como se pescar não fosse trabalho. Queremos ter voz como pescadores, como trabalhadores da pesca. E tudo o que interessa ao pescador tem que ser debatido com o pescador”.