A resistência como ato de fé. Como ato de amor próprio. Como expressão da consciência robusta de um povo sobre a importância que a sua luta tem não só para si, mas para toda a humanidade. A resistência do povo quilombola tem muita a ensinar à sociedade brasileira e capixaba sobre respeito, justiça e dignidade. E esse povo volta a pedir socorro. Ou continua a pedir?
Há 33 anos, a Constituição Federal reconheceu o direito ao seu território ancestral. Mas somente há cerca de 15 anos, a Fundação Palmares certificou boa parte das comunidades existentes no Espírito, que passaram a aguardar a conclusão do processo de titulação por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Nesse vácuo de atuação federal, os conflitos fundiários se avolumam no dia a dia das comunidades, que, apesar deles, erguem uma nova história de resgate de sua cultura tradicional e de
implantação de tecnologias mais sustentáveis de uso da terra, destruída pelas décadas de exploração pelos monocultivos de eucalipto da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose).
Nesta semana, a “Segunda Nota de Esclarecimento – Invasões nos Territórios Quilombolas do Sapê do Norte”, traz um grito de socorro, assinado pelas entidades representativas das comunidades locais, além da Comissão Quilombola do Sapê do Norte e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que rogam por proteção e respeito aos seus direitos. Socorro já ecoado nos gabinetes dos órgãos estaduais e federais, mas que continua sem resposta.
“As Comunidades gritaram por socorro, acionaram o Ministério Público Federal, Secretária de Direitos Humanos, deputados estaduais, Defensoria Pública Federal e Estadual, Polícia Federal e tantos outros entes para evitar que seus territórios fossem invadidos em uma política de governo de grilagem de terras. Nada adiantou!”, relatam, referindo-se, também, a uma ação feita há dois meses pela Defensoria Pública Estadual, em que foi constatada a
presença de invasores em 80% do território quilombola do Sapê do Norte.
“Onde está a representação legislativa e executiva do povo negro/quilombola?! Onde estão os órgãos do Poder Judiciário? Onde está o cumprimento da Constituição Federal? Onde está o poder de polícia que usa a justificativa da manutenção da ordem pública para nos exterminar? Mortos, adormecidos, suspensos até que uma tragédia ocorra? Quem serão as vítimas, quem serão os vilões, quem será o herói?”, questionam as entidades na nota.
A titulação das terras, dívida do Brasil com “os descentes do povo sequestrado de sua pátria mãe”, ainda não aconteceu para a maioria das comunidades quilombolas brasileiras e capixabas, passadas mais de três décadas da Constituição Federal e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Aos governos federal e estadual, o clamor é pelo cumprimento da lei e a proteção frente ao aumento da violência no território – corpos que são encontrados em meio ao eucaliptal, tiros no meio da noite, intimidações, agressões, ameaças, tráfico de drogas, queimadas – e ao ataque de escritórios particulares que praticam a chamada advocacia predatória junto aos quilombolas.
“Não permitiremos que mais uma vez nosso povo seja enganado, assinando documentações através de procurações e dando a advogado ou qualquer um que não nos representa, sem ao menos saber onde estará sendo utilizado essas assinaturas; não defendemos invasores em nosso território; não aceitamos que usem os nossos instrumentos jurídicos para serem mantidos no que não lhes pertence!”, afirmam os signatários. “Resistimos e continuaremos resistindo por muitas e muitas gerações, pois nós pertencemos à terra, ao território e trazemos conosco a força dos nossos antepassados e a esperança dos nossos descendentes!”, reiteram.
“Somos os agricultores(as) que leva comida para a mesa de muitas brasileiras e brasileiros, somos os trabalhadores que constroem casas, templos e edifícios comerciais, somos os trabalhadores que estão na indústria, no comércio, no setor de serviços, somos professores, médicos, advogados, cientistas, investidores de bolsa de valores, somos quem quisermos ser, mas acima de tudo, somos quilombolas e preservamos nossa relação com o nosso território, que é sagrado”.