“É uma vergonha no Brasil a necroengenharia que se pratica e afirmações que a gente ouve, de que é impossível retirar a lama dos recursos hídricos. É uma vergonha para a engenharia brasileira! É um vexame! Da mesma forma que é um vexame, nós sabemos que advogados da empresa pressionam operadores da lei e isso passa como se fosse nada. Isso vai desde as pessoas que operam o Direito nos territórios, como o Supremo Tribunal Federal! Como é que isso passa despercebido pelo sistema de justiça? Não passa despercebido. Eu ouso aqui dizer que há indiferença, e eu espero que não conivência, mas indiferença do Conselho [CNJ]”.
A fala eloquente é da arquiteta e urbanista Dulce Maria Pereira, professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde coordena o Laboratório de Educação Ambiental e Pesquisa (LAUEPAS), e foi proferida durante o debate realizado de forma virtual pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) nessa segunda-feira (17).
Ao seu lado, a também lutadora da democracia e da justiça no Brasil Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), e as jovens Mariana Sobral, defensora pública no Espírito Santo, e Tchenna Maso, advogada popular e integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que conversaram sobre os caminhos para efetivamente garantir justiça ao sistema de reparação no Rio Doce, sob mediação de Marisa Barbato, da executiva nacional da ABJD.
Em sua fala, a desembargadora Kenarik Boujikian chamou atenção para um aspecto de gravidade ímpar em todo o processo, que já dura 5,5 anos, que é a falta de imparcialidade do juiz substituto da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, Mario de Paula Franco Junior, responsável pela julgamento das ações, que já teve pedido de afastamento imediato do caso feito por cinco instituições de Justiça – Ministérios Públicos Federal e Estadual de Minas Gerais (MPF e MPMG) e Defensorias Públicas da União, do Espírito Santo e de Minas Gerais (DPU, DPES e DPMG) – e por um grupo de mais de cem juristas brasileiros.
Nem justiceiro, nem herói
“Impossível que a gente caminhe para uma resolução o mais próximo que se possa chamar de justiça e de reparação, se nós tivermos uma pessoa coordenando o processo que se considera alguma coisa como justiceiro, como um herói. Isso não é o papel de um magistrado. Um juiz não nasceu para ser pra ser justiceiro, o juiz não está na Constituição pra ser herói. O juiz nasceu pra lidar com os princípios constitucionais que têm uma afetação principal que é a dignidade humana”, sentenciou a desembargadora. “Um juiz parcial não passa de uma fraude”, afirma.
As declarações do próprio Mario de Paula, se comparando ao juiz Sergio Moro, reforça, é assustadora. “Um juiz tipo Moro não pode ser considerado verdadeiramente um juiz, porque atua sem imparcialidade. E nós sabemos o dano que um juiz como ele causa em todos os sentidos: direitos econômicos, sociais e humanos”. Nesse sentido, salientou, a maior preocupação nesse momento, passados já cinco anos e meio, “é que nós consigamos retomar algum curso de processo que possa levar à Justiça”.
Com neologismos contundentes, Dulce Maria afirmou que o processo de injustiça em curso ocorre num “contexto negociado” em que o próprio estado nacional compactua com a “minerodependência do ponto de vista econômico”, com a “minerosubserviência” e “com grandes indícios de minerocorrupção”, o que “torna os territórios [atingidos] extremamente vulneráveis”.
“Ainda hoje discutimos por exemplo a
veracidade do nexo causal, como se a ruptura da barragem não tivesse causado esses danos que são observados a olho nu, mas que também estão observados pela ciência. E essa produção científica é desqualificada. E pior: cientistas e pesquisadores são comprados para se contrapor a essa realidade. Isso é dramático!”, narra Maria Dulce.
Igualmente dramático, compara, é a expansão da Covid-19 nos territórios, em decorrência dos atos de Mário de Paulo. “Ele determinou não só que advogados atuassem no território, mas também que as pessoas atingidas se organizassem em reuniões e os resultados em termos de contaminação de pessoas atingidas é impactante!”, denuncia.
Além da superposição das decisões judiciais, “há uma desqualificação e uma desconsideração dos dados científicos e a produção de processos tecnológicos que tornam os territórios atingidos territórios de sacrifício”, ou seja, a chamada “necroengenharia” que objetiva excluir as pessoas de seu território para que as reparações não sejam feitas e os crimes ambientais se perpetuem.
“Também precisamos discutir o lucro das empresas. Como é que as empresas podem, tendo os seus seguros fora do Brasil, utilizar esses recursos pra si próprias e negar a reparação? Como essas empresas podem operar processos de expansão da contaminação, danos ambientais, da prática identificada do racismo ambiental nos territórios, e desqualificar a organização não só dos atingidos e atingidas, como os resultados dos trabalhos científicos. Isso é grave!”.
Acordos são meros papeis
A defensora pública Mariana Sobral questionou a grande quantidade de acordos extrajudiciais que vêm sendo firmados entre as empresas criminosas, a Fundação Renova e as instituições de Justiça. “Por que tanto acordo? Não estaria ligado a uma desconfiança a essa atividade do Poder Judiciário?”, indaga.
E acordos, ressalta, que não produzem efetiva reparação. Um deles, o Termo de Ajustamento de Conduta da Governança (TAC-Gov), foi por ela assinado por haver uma “previsão de acesso à Assessoria Técnica”, mas passados três anos, elas não foram implementadas. “Então o acordo é um mero papel, ele não serve para reconhecer direitos”, lamenta, principalmente devido à falta de igualdade entre as empresas criminosas e os atingidos, exatamente pela ausência da assessoria técnica.
Assim, recorda Mariana, todo o processo de construção de uma governança mais participativa foi destruído durante a pandemia, quando o juiz determinou a entrada de advogados particulares nos territórios e homologou as
apócrifas comissões de atingidos, num processo em que as pessoas foram levadas a assinar o termo de quitação geral de danos para receberem suas indenizações e com valores bem abaixo do real tamanho dos danos sofridos, e ainda subtraindo 10% do valor para pagamento dos honorários dos advogados.
Para as empresas, ressalta, “o desastre tinha acabado quando assinaram o TTAC [o primeiro acordo, em março de 2016] e privatizaram o desastre, criando a Fundação Renova. Era para ser uma entidade autônoma, mas ali todo mundo sabe que quem manda são as empresas e não é mais do que uma estratégia de marketing para afastar o nome da Vale e da BHP”, denuncia. Esse processo de reparação, acentua, “é um desastre dentro do desastre”.
“A gente precisa repensar como conseguir transformar o sistema de justiça num sistema justo. Como quebrar essa linha abissal do conhecimento e levar o conhecimento das comunidades para o sistema judiciário, porque não é visto como conhecimento. A gente escuta falar em reuniões, que não é para aceitar estudos acadêmicos e ideológicos!”, exclama.
‘Morrendo aos poucos’
Diferentemente de Brumadinho, contextualiza Mariana Sobral, “o caso do Rio Doce tem uma característica muito dolorosa principalmente para a saúde mental das pessoas. A gente vê as pessoas morrendo aos poucos”, enternece. Os atingidos, indigna-se, não tiveram direito ainda de saber os efeitos do desastre para sua saúde física e do ambiente, “sem saber se realmente vão ter de volta o rio, se poderão usar a água novamente”.
Em síntese, concluiu a defensora pública, “a solução que a gente acredita, que é com a participação popular, não é acreditada nem pelas empresas nem pelo sistema de justiça atual”, apontou.
Impunidade corporativa
Viés também enfatizado pela coordenadora do MAB, a advogada popular Tchenna Maso, para quem o processo de reparação sofre do “paradigma da impunidade corporativa”, em que “a Vale que faz a gestão do caso” e “tudo é construído de cima para baixo, sem a participação dos atingidos, o que determina a falta de efetividade dos acordos e possíveis soluções”. Assim como a Defensoria Pública, o MAB luta pela “centralidade no sofrimento da vítima”.
O crime, elenca, matou 19 pessoas e impactou diretamente entre 300 e 500 mil, destruindo toda a bacia do rio Doce e o litoral capixaba, que “já perdeu até 10% da biodiversidade marinha por conta da presença da lama”.
O estado brasileiro, aponta, “terceiriza o processo de reparação, que foi transferido para a Fundação Renova, uma entidade privada de controle das empresas, que faz o que quer”, fato esse que “está sendo questionando pelo Ministério Público de Fundações”, devido ao desvio de função. Também a chamada figura do “juiz universal do desastre” é um fato grave, por “violação de competência e territorial”.
Passados cinco anos e seis meses do rompimento, repudia Tchenna, “não tem ninguém respondendo penalmente pelo conflito, não tem reassentamento de nenhuma família, não se sabe qual é o contingente exato de atingidos e não há discussão sobre o dano ambiental, a não ser o que se refere à presença da lama na barragem de Candonga”.
Além de Brumadinho, há experiências em outros pontos do planeta que poderiam inspirar uma condução mais justa do processo, os casos Obed e Mount Polley, no Canadá, também de rompimento de barragens de mineração, e o caso de Ajka, na Hungria. Este, ocorrido em 2010, despejando 700 mil metros cúbicos de lama tóxica produzida no processo de fabricação de alumina da empresa MAL Hungarian Aluminium Production and Trade Company. “Em uma semana todos os dirigentes da empresa estavam presos e em um mês a empresa estava estatizada”, compara Tchenna.