Na defesa dos princípios constitucionais, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu mais uma vitória histórica ao povo quilombola brasileiro, ao decidir, na noite desta terça-feira (23), pela suspensão de atos de remoções e despejos de quilombolas durante a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) e pela obrigatoriedade da criação, no prazo de 30 dias pelo governo federal, de um plano nacional de enfrentamento da pandemia de Covid-19 desta população.
A decisão ocorre no âmbito do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742/2020, protocolada em setembro de 2020 pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e pelos partidos PSB, PSOL, PCdoB, REDE e PT. A ação destacava a omissão do governo brasileiro em efetivar medidas de enfrentamento dirigidas para quilombos à grave crise epidemiológica já instalada no país.
“No Sapê há situações que envolvem também invasões e vendas de terras por pessoas de fora das comunidades. Mas a decisão do STF é um elemento significativo pra gente usar na defesa dos quilombolas que estão no seu território tradicional”, pondera Arilson Ventura, coordenador-executivo das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo – Zacimba Gaba e coordenador nacional da Conaq.
Sobre a imunização, a decisão favorável do STF chega num momento em que
as comunidades já iniciaram um levantamento de sua população para estimar o quantitativo de doses necessário para imunizar os quilombolas com idade de 18 anos ou mais. “O levantamento se torna mais urgente ainda agora”, avalia Arilson
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Vulnerabilidade
Conforme publicada pela ONG Terra de Direitos, a população quilombola brasileira conta com baixíssimo acesso à rede pública de água, esgoto e acesso ao sistema público de saúde, entre outros, configurando uma situação de extrema vulnerabilidade social, ainda mais agravada no contexto da pandemia.
“A manifestação mais intensa e maior letalidade da doença entre a população negra também é outro fator, o que implica na urgência de ações específicas para enfrentamento da pandemia. Ainda assim, a população negra representa apenas 19% da população vacinada no país até o momento, ainda que constitua 56% da população brasileira, de acordo com o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], uma evidência de que a desproporcionalidade dos impactos da pandemia mais intensos entre a população negra – fruto da desigualdade socioeconômica e ausência do estado – também tem se manifestado em menor porcentagem de negros vacinados”, sublinhou a Terra de Direitos.
Para elaboração do plano nacional, o governo terá o prazo de 72 horas para constituição de um grupo de trabalho interdisciplinar, com participação da Conaq. Além disso, dá ao governo 72 horas para incluir informações de raça e etnia entre os registros de casos da Covid-19 e para a retomada de plataformas públicas de acesso à informação, como os sites que antes traziam as informações do Programa Brasil Quilombola e o monitoramento feito pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) com informações sobre a população quilombola e acesso a políticas públicas.
Votos
Conforme relatado pela Terra de Direitos, o resultado do julgamento da ação representou uma maioria de votos que divergiram em partes do relator da ação, Ministro Marco Aurélio. Em seu voto, o ministro reconheceu a omissão do Governo Federal na proteção aos quilombolas e determinou a elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento da pandemia entre os quilombos, mas deixou de reconhecer pontos importantes da ação movida pela Conaq. O relator não garantiu a suspensão de medidas de reintegração de posse em conflitos fundiários envolvendo quilombos, mesmo que apenas 7% das comunidades quilombolas das 5.972 localidades quilombolas tenham o título de seus territórios, segundo dados do IBGE.
Ao votar, o ministro Edson Fachin acompanhou o relator na criação do plano, mas divergiu em parte no voto e reconheceu o pedido feito pela Conaq na ADPF para suspensão dos despejos. “A manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação das comunidades quilombolas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”, apontou Fachin.
O voto de Fachin foi acompanhado pelos ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – que havia votado com o relator, mas depois mudou seu voto.
Apenas seguiu Marco Aurélio o ministro Nunes Marques, que foi indicado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Ao votar, Nunes não reconheceu a legitimidade da Conaq em propor a ação e questionou o mérito da ADPF ao alegar que já estavam previstas outras medidas voltadas aos quilombolas, como a Lei 14.021/20, que apresenta medidas de proteção aos indígenas e contempla a população quilombola em alguns pontos. O descumprimento da lei e a falta de ações do Executivo Federal, no entanto, foram denunciados pela Conaq na ADPF.
Legitimidade da Conaq
O julgamento da ação também carrega outros dois fatos históricos, salienta a ONG: ao admitir a legitimidade da Conaq em propor a ação, o STF reconheceu a Coordenação Quilombola como uma entidade de classe de âmbito nacional e advogadas quilombolas fizeram as sustentações orais.
“Essa vitória é histórica pois é a primeira vez que a gente busca o STF para execução de um direito que já é garantido e não estava sendo efetivado. É uma vitória maravilhosa e emocionante, depois de tantas dificuldades e enfrentamentos desde o início da pandemia”, destacou a quilombola do território Kalunga/GO e assessora jurídica da Conaq e Terra de Direitos Vercilene Dias.