Denúncia dos quilombolas será levada esta semana à mesa mediada pelo governo do Estado
Uma pauta central será levada pelas comunidades quilombolas de São Mateus e Conceição da Barra, no norte capixaba, para a primeira reunião deste ano da mesa de negociações mediadas pelo governo do Estado acerca do recuo dos eucaliptais da Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) dentro do Território Tradicional Quilombola do Sapê do Norte, que é composto por mais de 30 comunidades já certificadas pela Fundação Palmares, aguardando a titulação por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A reunião está marcada para esta quarta-feira (23) de forma remota e, a princípio, teria como objetivo principal tratar da resposta dos quilombolas à contraproposta de recuo dos eucaliptais apresentada pela multinacional em janeiro, por meio de reuniões nas comunidades, acompanhadas por órgãos do governo do Estado, medida que é reivindicada há mais de três anos.
Enquanto a solicitação das comunidades foi de uma área de 10 hectares para cada família quilombola, seguindo um quantitativo já utilizado nos processos de reforma agrária e que é considerado o mínimo para garantir dignidade às famílias, a empresa contrapropôs apenas 2,4 hectares. “Nós levamos a proposta para as nossas comunidades, para então reunir uma posição de todo mundo e apresentar na próxima reunião da mesa. Só que a empresa já está agindo como se o acordo estivesse firmado”, explica Flávia dos Santos, da comunidade Angelim 2 e integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.

A negativa da contraproposta será levada à reunião, mas, diante da truculência com que, segundo as comunidades, a empresa vem novamente adentrando os territórios tradicionais com suas máquinas para refazer os monocultivos, o ponto principal da pauta será o pedido para que os órgãos federais e estaduais, do Executivo e da Justiça tomem as medidas necessárias para garantir direitos humanos básicos das famílias.
Os relatos das lideranças ouvidas por Século Diário dão conta de denúncias graves, envolvendo agressões, ameaças, criminalização, cerceamento de seu direito de ir e vir dentro do próprio território, intoxicação por despejo de agrotóxicos nos eucaliptais e negativas de serviços públicos essenciais, como água, esgoto e energia elétrica. Um contexto violento e abusivo que, afirmam, compõem uma postura crônica da empresa perante as comunidades e que, de tempos em tempos, se intensifica, sempre que é chegado o momento de refazer ou expandir as áreas de monocultivos – dinâmica que é utilizada desde a ditadura militar e que faz dos monocultivos de eucalipto o uso do solo que mais cresce no Espírito Santo, de acordo com o Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, e quase dobrou de tamanho no Estado, segundo levantamento do MapBiomas.

A Mesa é coordenada pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH), tendo participação de outros órgãos do governo estadual, além de instituições de Justiça como o Ministério Público Federal (MPF/ES) e as Defensorias Públicas Estadual e da União (DPES e DPU/ES). Todos eles já estão cientes do momento de grave tensão a que as comunidades estão sendo submetidas e precisam agir. “A gente precisa de uma ação do governo do Estado e da Justiça”, conclama Flávia.
Ela cita ainda um encontro realizado este mês com o MPF sobre o assunto. “A procuradora acolheu nosso relato e a gente está preocupado com a criminalização dos quilombolas por parte da empresa, para forçar um acordo que não é condizente com as nossas necessidades e direitos”. E lista reuniões realizadas com a DPES e DPU. “A Defensoria fez reunião com o Jurídico da Suzano também”, acrescenta.
A própria Flávia foi alvo das estratégias de criminalização dos quilombolas, tendo ido há poucos dias à delegacia prestar depoimento no âmbito de um Boletim de Ocorrência (BO) registrado pela empresa contra moradores locais que trabalhavam no plantio de roça agroecológica em uma das retomadas – iniciativas de reconstrução de comunidades tradicionais destruídas pelo agronegócio de eucalipto, como forma de garantir a subsistência das famílias e chamar atenção dos órgãos públicos sobre a morosidade do processo de regularização do território quilombola.
“Eu dei meu depoimento sobre a retomada. No boletim diz que a gente estava ameaçando os funcionários da empresa e os policiais militares com facão e pau, sendo que a gente só estava na área trabalhando. A gente entende que é uma forma de criminalizar o nosso povo. Nesse dia a gente nem estava com nada na mão, nem facão nem enxada, porque quem estava trabalhando na roça estava lá no meio do mato, nem chegou perto do carro. Mas a polícia nem conversou com a gente, só a vigilância. Em nenhum momento a gente usou tom de ameaça, apesar de estar de posse de facão, porque é nossa ferramenta de trabalho e está sempre na bainha. O único pau que a gente usa é o cabo da enxada, do enxadão. Essa está sendo uma nova estratégia da empresa para criminalizar os quilombolas, dizendo que estamos ameaçando funcionários da empresa. Antes ela dizia que a gente estava depredando o patrimônio privado, que é o eucalipto, agora diz que estamos ameaçando”, relata.
Na retomada do Córrego do Alexandre, na última semana, a mesma estratégia foi utilizada, afirma. “A empresa usa o seu poder financeiro e toda a sua estrutura para forçar as comunidades a aceitarem um acordo que não é condizente com a sua realidade. Angelim 2, Córrego do Alexandre, Angelim 1…ela fica intimidando as lideranças e os moradores das comunidades com prisões, usando a polícia para nos intimidar. Estão forçando o Córrego do Alexandre a abrir mão de uma retomada de mais de dois anos, para plantar eucalipto. Não existe acordo. A empresa está plantando eucalipto dentro da área que ela mesmo apresentou como contraproposta para nós”, repudia.
A retomada no Córrego do Alexandre foi iniciada depois da última colheita de eucalipto, relata Douglas dos Santos Alexandre, presidente da Associação de Remanescentes Quilombolas e Produtores Rurais da Agricultura Familiar e Pesqueira do Córrego do Alexandre, membro do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra e integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. “Os órgãos estão facilitando para a empresa. A proposta dela não atende as famílias quilombolas. Acredito que na devolutiva da mesa [no dia 23 de abril], não haverá acordo com os 2,4 hectares. Com certeza as comunidades vão permanecer produzindo nas suas retomadas”, pondera.
Na semana do conflito protagonizado pela vigilância patrimonial da Suzano, a comunidade organizou um protesto pacífico, reunindo também as crianças. Os cartazes explicitaram direitos fundamentais em frases como “Território: nosso direito, dever do Estado”; “Luta por direitos: alimentação, paz, dignidade, meio ambiente, políticas públicas”; “Eucalipto não é floresta”; “Eucalipto não é nosso, mas o território sim”.

Vice-presidente da Associação de Moradores da Comunidade de Coxi e também integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte e do Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra, uma das mais importantes manifestações folclóricas do Espírito Santo, Paulo dos Santos Faria alerta para a gravidade da situação. “Às vezes a gente falando, as pessoas não percebem o que está acontecendo de verdade. A gente é massacrado por essa empresa. Eu fui nascido e criado aqui na roça, desde pequeno, sempre a gente passou por essa dificuldade”.
O pior, afirma, é que além de impedir o acesso das comunidades ao seu território, a empresa vem provocando um grande desastre ambiental. “Eu trabalhei na empresa e tenho a propriedade de falar o que acontece: eucalipto atinge a natureza, sim. Eu vi um lugar só com pasto e uma represa enorme, que vendeu para a empresa. Voltei lá para plantar eucalipto de novo, depois de sete anos, oito anos, e a represa não estava mais lá, era só areia. Quem é que puxa água assim? É o eucalipto. Para manter o eucalipto, no começo, puxa 10 caminhões, cada um de 15 mil litros de água. Por dia, cada um faz três a quatro viagens. Isso o ano todo, é muita água que é consumida. Quando chega nas comunidades aqui perto, tinha represa enorme, foi acabando tudo. Foi só consumindo, não tem como falar para gente que não tem culpa, que eucalipto é floresta, é mentira isso”, descreve.
A água que resiste, complementa, é constantemente contaminada. “Para pescar no córrego, tem veneno na água, espuma na água. A empresa joga veneno. A gente não tem água”. E toda a fauna sofre. “Eu já trabalhei também perto da Reserva de Sooretama, indo para Linhares. Chegava na área e via tatu, parava o trator, com dó. Mas a empresa: ‘não, vamos bater veneno!’. E no outro dia, era dez, vinte tatus mortos. E a empresa diz que nós que mata os animais. Não, é ela que mata, e a justiça sabe e não faz nada”, denuncia.
Paulo descreve ainda as dificuldades criadas pela empresa para que as comunidades tenham acesso a serviços públicos essenciais, sob aparente condescendência do governo e das concessionárias. “Aqui no Coxi tem várias pessoas com remédio caro na geladeira, mas se chove, fica sem energia, fica sem acesso de estrada. A gente fala com o governo do Estado, mas não tem jeito, é a empresa que sempre tem voz. Precisa tirar os paus da rede de energia, porque sofre quando chove. A empresa fala que vai tirar, mas nunca tira. Chegou momento de nós mesmos agir. Cortamos. E o vigilante foi lá com cachorro, ameaçando. Quem está sofrendo aqui, com mosquito, calorão, remédio caro, meu sogro é cego e tem outros também”, conta.

Nesse momento, ele conta que os próprios moradores aguardam a transferência da rede de energia instalada em local inadequado. “Agora estamos numa luta para tirar a rede de energia do brejo, porque a empresa não liberou para passar a rede de energia na estrada, na beira do eucalipto. Agora que fizemos a retomada na comunidade e fomos no governo do Estado, estão fazendo na estrada. Mas vem muito lento, vem um dia a EDP coloca dois postes, vem outro dia, coloca mais dois…”.
As estradas são outro ponto sensível das reivindicações. “Quando cai madeira na estrada, não tem como passar. Eu aqui estou a 2km da pista [rodovia asfaltada], pertinho, mas já ficamos mais de dois meses, sem acesso para sair. Ficamos três meses ilhados. Ligando para empresa, nada. Os meninos ficaram sem ir para a escola, minha esposa é professora, também não conseguia. A prefeitura que mandou uma máquina e acertou a estrada, mas aí a Suzano colocou de novo caminhão e trator para estragar a estrada”. Assim como o lixo e a madeira, descartados sem critério. “Tem que tirar eucalipto na beira da nossa terra. Tem muito eucalipto que ela não tira, fica ano mais ano, apodrecendo e enche de inseto, escorpião, é perigoso. E também a prefeitura joga lixo dentro do terreno das pessoas no Córrego do Alexandre, há muito tempo, até com agulha, que fura pé de criança”.
Futuro
Há ainda a vigilância que quer intimidar. “A gente fica aqui 24 horas vigiado por drone, fica na porta da gente, vigiando dentro das nossas terras. Nós vamos na Polícia Militar, registramos queixa, mas a Polícia, ninguém faz nada. Vamos no governo do Estado…nós não somos bandido. Quando não é o drone, é o carro da empresa na porta da gente. Ninguém faz nada. Até quando nós vamos viver dessa forma?”, questiona.
A criminalização, diz, atinge também os ofícios tradicionais. “Sou artesão também, mas se eu preciso tirar um cipó, tem que ser escondido, porque mesmo eu tendo carteirinha, se o vigilante da Suzano me vê, ele diz que eu estou depredando o patrimônio, quer me levar para a delegacia”.
Entre a própria Polícia, no entanto, há os que reconhecem os abusos da empresa, conta Paulo. “Alguns policiais ainda falam ‘eu sei que vocês estão certos, mas eu tenho que fazer meu trabalho’ e falam com os vigilantes que não podem fazer isso, que somos quilombolas e não invasores. Sendo que alguns vigilantes são da própria comunidade, fazem isso em troca de dinheiro, de ter um emprego”.
É preciso que o governo do Estado tome as medidas necessárias. “Minha revolta é também com o governo, que está mediando um acordo que a gente não quer, pressionando a gente para aceitar, que vamos receber dinheiro, política pública. O projeto que vier aqui tem que vir do governo, não de empresa. O CAR [Cadastro Ambiental Rural] a empresa fez em cima das nossas terras. Governo sabe, todo mundo, e ninguém faz nada”.
A luta, afirma, é para garantir dignidade hoje e amanhã. “Por que a gente não quer eucalipto perto da nossa terra? Porque a gente quer que a natureza volte, para os nossos filhos conhecerem o que a gente conheceu lá atrás”.

Várias frentes de luta
A mesa estadual visa buscar um acordo entre as comunidades e a Suzano, em paralelo a outros processos de luta que tramitam. Um deles é a ação judicial impetrada pelo MPF e que foi vitoriosa no julgamento em primeira instância. Em outubro de 2021, o juiz Nivaldo Luiz Dias determinou que o Estado declarasse a nulidade das matrículas de dezenas de imóveis registrados pela então Fibria, por entender que elas foram alvo de fraudes. Outros pedidos da Procuradoria também foram acatados pelo magistrado, que condenou o Estado a “titular as terras devolutas que reverteram ao patrimônio público estadual em virtude da declaração de nulidade, ocupadas tradicionalmente por remanescentes das comunidades de quilombos”. A sentença também decide “condenar o BNDES a não conceder financiamentos à Fibria S/A destinados ao desenvolvimento de atividades nas terras públicas objeto da presente demanda”.
Se a empresa recorreu dessa decisão no Tribunal de Justiça, é uma informação que as comunidades não conseguiram obter. “O governo do Estado não dá retorno para a gente sobre esse processo judicial. Diz que ainda cabe recurso, mas a gente não sabe se a Suzano entrou com recurso, e o governo não faz nada”, conta Flávia dos Santos, ecoando uma reclamação recorrente das comunidades em relação às autarquias que normatizam e fiscalizam os monocultivos de eucalipto, como o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), que, quando questionado sobre a regularidade da expansão do deserto verde, não responde os quilombolas a contento.
Outra frente é o processo administrativo de titulação das terras, sob responsabilidade do Incra. Desde 2023, a Superintendência Estadual da autarquia afirma reunir esforços extras para agilizar os processos, incluindo a contratação de antropólogos para finalizar os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID).
Há ainda as Mesas Quilombolas, em âmbito nacional e estadual, coordenadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e um GT reunindo Espírito Santo e Bahia, para “avaliar e desenvolver ações e estratégias para obtenção e destinação de imóveis rurais à reforma agrária na região, outras políticas públicas fundiárias e solucionar conflitos agrários”, visando “garantir a paz no campo” . Também nesta semana, uma nova reunião da Mesa Quilombola Nacional será realizada, com participação de lideranças capixabas, onde as denúncias das comunidades do Sapê do Norte serão pautadas.