Comunidade exige respeito à retomada quilombola. Empresa não garante evitar novos ataques, mas se diz ‘”aberta ao diálogo”
“Desculpem-me, quilombolas, por invadir seu território numa sexta-feira à noite com dez máquinas de corte de eucalipto sem qualquer aviso prévio e destruir essa grande área nas margens do córrego Angelim, o único que ainda resiste após meio século de devastação ambiental e humana iniciada com a Aracruz Celulose e mantida por nós até hoje”.
A anedota/paródia acima ironiza a posição manifestada pela Suzano Papel e Celulose, maior corporação multinacional produtora de celulose do mundo, durante reunião realizada nessa segunda-feira (14) na presença de membros da comunidade do Angelim II, das Defensorias Públicas Estadual e da União (DPES e DPU), Ministério Público Federal (MPF/ES), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH).
O motivo foi o ataque sofrido pela comunidade com uma operação de corte de eucalipto iniciada na sexta-feira (11) à noite pela Suzano, de forma totalmente inesperada, levando medo e insegurança para os moradores, agressão semelhante à já noticiada em Século Diário há seis anos e tantos outros atos de violência já empenhados. Apenas no sábado pela manhã os populares conseguiram interromper a ação dos funcionários da Suzano e organizar sua proteção.
“Não tinha como não saber que não é território quilombola”, afirma Flávia, indignada com a alegação feita pelos representantes da Suzano, a gerente jurídica, Clara Muniz, e o advogado Wilson Muniz, de que a invasão das máquinas foi um equívoco, pois não sabiam se tratar de território quilombola, e de que os mapas não deixam clara a localização e outros argumentos do tipo.
“Além das placas, eles conhecem o nosso trabalho, as plantações, o reflorestamento, a recuperação das nascentes. Tem os estudos da Ufes, o processo no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Além disso, cortaram os eucaliptos na margem do córrego Angelim! Na margem do Angelim!”, conta a líder quilombola, comovida pela falta de respeito da papeleira com o único corpo d’ água que ainda corre dentro da comunidade, porém totalmente poluído e sem qualquer condição de uso, seja para consumo humano, animal, ou mesmo para irrigação. Há anos, os moradores do Angelim II são abastecidos com carros-pipa enviados pela prefeitura municipal, recorrendo também a uma nascente localizada a cinco quilômetros de distância.
‘A terra é nossa’
“Ela não quer reconhecer a nossa retomada”, avalia Flávia, citando o movimento de Retomadas, iniciado em 2007 por diversas comunidades quilombolas, que decidiram demarcar e tomar posse do seu território, diante da morosidade dos órgãos federais em finalizar os processos de titularização.
“Foi quando eles deram uma acalmada e disseram que iriam participar da reunião do dia 23 [de junho] com o Incra”, conta, referindo-se a uma reunião em que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária irá apresentar novos mapas e dados sobre o processo de titularização das terras já reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares como pertencente aos quilombolas. “Eles disseram que estão ‘à disposição’ e ‘abertos ao diálogo'”, reproduz Flávia. “Diálogo estranho esse deles, que só acontece para fazer acordo quando beneficia só a eles”, critica.
Desertificação e resistência
“A Comunidade Angelim II está morrendo de sede porque secaram todos os córregos”, brada Flávia, reverberando um processo de desertificação que atinge todo o Sapê do Norte e que só não é mais intenso graças ao trabalho voluntário e determinado das lideranças quilombolas que resistem no território e precisam retomar suas fontes de água.
“Estamos sem acesso à internet porque os eucaliptos não deixam. Dentro do nosso território nunca aconteceu um único plantio de árvore nativa pela empresa. Apenas nós que fazemos esse trabalho e, do nada, eles caem para dentro para destruir o que estamos fazendo. Eles querem apagar nossas memórias, querem nos apagar daqui. Não querem ouvir os nomes dos nossos ancestrais, por isso, agora que estamos colocando os nomes, eles se sentem ameaçados. Mas nós vamos resistir”, afirma.