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‘Temos de desarmar uma bomba por dia’

Perto de se completar dois anos e meio do maior crime ambiental do Brasil e o maior da mineração mundial, um quarto acordo segue em negociação extrajudicial, com objetivo de cessar a inversão de valores que ainda predomina nos processos de ressarcimento dos atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão da Samarco/Vale-BHP, ocorrido em Mariana/MG, no dia cinco de novembro de 2015.

O chamado Acordo da Governança é uma iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) e das Defensorias Públicas do Espírito Santo e Minas Gerais. Sua elaboração está sendo negociada diretamente com as empresas criminosas, com objetivo de colocar o atingido no centro das decisões, inserindo representantes das comunidades nas esferas formais de deliberação e fiscalização.

“Nosso maior receio é que o atingido seja esmagado por duas superestruturas criadas por instituições públicas, empresas e entes federativos, seja quais forem as suas intenções”, afirma o defensor público estadual Rafael de Mello Portella Campos, referindo-se à realidade atual que se deseja mudar com o Acordo da Governança em elaboração.

Hoje, explica o procurador da República em Linhares, Paulo Henrique Carmargos Trazzi, a Fundação Renova – entidade criada pelas empresas para executar mais de 40 programas de compensação e reparação dos impactos socioambientais sobre as comunidades e o Rio Doce – é quem diz quem é atingido e quem não é, e de que forma a pessoa será reparada ou compensada.

“É inaceitável!”, protesta. “O pescador que chega lá é tratado como se fosse um criminoso, e a Renova, o julgador do caso. Que isso comece a mudar a partir do Acordo da Governança”, defende. “Pesca é a atividade mais informal do nosso país. Existem vários caminhos para se conseguir averiguar os danos alegados pelos pescadores, inclusive checar fraudes. Não dá para colocar todo mundo num mesmo risco elevado de fraude e gerar mais dificuldades para as pessoas terem seus direitos reconhecidos”, diz, referindo-se aos casos isolados de tentativas de maximização de danos, como declarações irreais de rendas e de bens afetados pela lama de rejeitos.

Ele lembra ainda que a Fundação representa os causadores do dano, “que estão respondendo por processo criminal por homicídio doloso, e podem ir a júri popular”, destaca. O processo criminal, aliás, caminha a passos lentos. São mais de 20 réus, alguns no exterior, e mais de 200 testemunhas para serem ouvidas, o que gerou um problema, porque a estrutura física disponível ao juiz federal Jacques de Queiroz, de Ponte Nova/MG, que está cuidando do caso, não permite tantas pessoas. “Não cabem nem os advogados na sala de audiência”, informa o procurador, referindo-se ao Tribunal da cidade. 

Para além da trilogia

A esfera criminal, no entanto, não integra o pacote de tentativas de gestão do crime. A trilogia que antecede a atual elaboração do Acordo da Governança é formada pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), o Acordão “chapa branca”, feito em março de 2016 entre a União, os governos do Espírito Santo e Minas Gerais e as empresas; a ação civil pública (ACP) de R$ 155 bilhões, impetrada pelo MPF em maio de 2016; e o Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), em janeiro de 2017, que realiza estudos em três eixos, com objetivo de firmar um Termo de Ajustamento de Conduta Final (TACF), contendo programas de reparação e compensação que atendam de fato às necessidades dos atingidos. “Se não for possível o TACF, teremos ao menos elementos para propor um outro instrumento”, informa o procurador da República em Linhares.

O TTAC criou 41 programas de reparação e compensação socioambiental do Rio Doce e dos atingidos, a Fundação Renova, para executar os programas, e o Comitê Interfederativo (CIF) – presidido pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e formado ainda pelos governos estaduais e municípios, além do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce – para fiscalizar e gerenciar tudo. 

 

“O TTAC foi criado de cima pra baixo”, contesta o defensor público Rafael. É autoritário, sem qualquer participação dos atingidos. “Este distanciamento está levando empresas e poderes públicos a pagarem um preço muito caro pela forma como estão conduzindo os programas”, comenta.

O TTAC teve sua homologação judicial contestada pelo MPF, que, dois meses depois, em maio de 2016, impetrou a ACP 155 bi, com um formato totalmente diferente de gestão, com voz efetiva para os atingidos, com programas e ações mais abrangentes e com um valor quase oito vezes maior que o do TTAC, de R$ 20 bilhões. “O TTAC vale para as partes que assinaram, mas, para nós, não. Nós não nos vinculamos a isso, não precisamos aceitar. Seguimos na Justiça com outros acordos, mais abrangentes”, esclarece Paulo Henrique Camargos Trazzi.

Juiz ainda não visitou áreas atingidas

A ACP 155 bi tramitava lentamente na 12ª Vara Federal, em Belo Horizonte, sob responsabilidade do juiz federal Mario de Paula Franco Júnior, que ainda não visitou nem Mariana/MG, nem Regência/ES, sem falar em outras localidades atingidas. Mas há alguns meses teve sua tramitação suspensa, em virtude das negociações para formação do futuro Acordo da Governança.

Já o TAP segue finalizando seu terceiro e último eixo, o socioeconômico, e teve prazo final para conclusão adiado pela quinta vez, pelo juiz Mario de Paula Franco Junior, para 25 de junho de 2018. 

No momento, o Fundo Brasil de Direitos Humanos prepara o lançamento dos editais para contratação das assessorias técnicas que irão levantar as necessidades dos atingidos e valorar as ações e programas definitivos a serem executados. “Essas prorrogações do TAP são normais, por conta complexidade dos estudos”, explica o procurador, mencionando que são 15 a 20 áreas de conhecimento específicas, que dialogam entre si. “É um desafio absurdo! Não temos estrutura de perícia tão forte no MPF”, diz.

Por isso, foi difícil escolher as entidades e empresas a serem contratadas para os estudos preliminares, entidades que tenham capacidade de suportar a grandiosidade e complexidade do trabalho e, ao mesmo tempo, não tenham vinculação comercial ou institucional com as empresas de mineração envolvidas no caso, as maiores do mundo.

Enquanto isso, quem continua ditando as regras é o Acordão Chapa Branca, com sua Renova e CIF, seu autoritarismo e ilegalidades. A cláusula da quitação geral dos direitos é o exemplo máximo dessa ingerência.

Contestada judicialmente pelas Defensorias Públicas do Espírito Santo e da União em maio de 2017, a ação sequer teve seu julgamento iniciado pelo juiz federal Mario, o da 12ª vara de Belo Horizonte, que ainda não visitou as comunidades atingidas, e em cujas mãos estão milhares de processos individuais, a maioria paralisados enquanto não se desfaz o imbróglio judicial maior, que é o duelo entre TTAC, ACP 155 bi e Acordo da Governança. 

Somente as ações individuais interpostas na Justiça estadual capixaba continuam tramitando, e, felizmente, a partir de um entendimento do atingido como um “consumidor por equiparação”, o que lhe garante mais poder frente às requerentes, como o aumento do prazo prescricional, ou seja, a data final em que ele pode acionar a Justiça: ao invés de apenas três anos, se expande para cinco anos após o crime, como previsto no Código de Defesa do Consumidor.

Desarmando uma bomba por dia

“As empresas [Samarco, Vale e BHP Billiton] têm muito poder, muita estrutura. De um lado isso poderia permitir não faltar dinheiro para as reparações dos atingidos. Mas também garante muito poder para impugnações judiciais”, observa o procurador Paulo Henrique.

Os Ministérios e Defensorias Públicas, por sua vez, vivem “uma crise orçamentária sem precedentes” e não podem, nem do ponto de vista legal nem orçamentário, contratar profissionais de forma temporária para atuar especificamente no caso.

“A gente se desdobra”, confessa, ressaltando que o maior trunfo das instituições é “ter a Justiça ao seu lado”, ou seja, a defesa dos direitos dos atingidos lhes dá legitimidade que pesa favoravelmente na balança de poder que tem, no prato ao lado, o contrapeso das poderosas mineradoras.

Os custos extras que os órgãos ministeriais e do Executivo – como secretarias de saúde e autarquias e secretarias de meio ambiente – estão tendo para atuar no caso também devem ser reparados pelas empresas criminosas, segundo preveem os acordos pleiteados pelos MPFs e DPs.

O desgaste institucional e individual é enorme, não só pelo volume de trabalho, mas porque “são questões que envolvem tensão o tempo todo”, afirma.  “Temos que desarmar uma bomba por dia”, metaforiza o procurador. E, mesmo assim, conquistar resultados em baixa velocidade. “É muito angustiante não dar das respostas no tempo que as pessoas precisam”, lamenta.

Prazo prescricional 

Em meio ao imenso balaio jurídico, os atingidos devem tomar muito cuidado e buscar soluções individuais para fazer valer seus direitos, alerta Paulo Henrique e Rafael. Atingidos são completamente livres para escolher um advogado particular ou um defensor público. Também são livres para esperar uma ação na Justiça ou para fazer um acordo extrajudicial diretamente com a Fundação Renova.

“Somente a pessoa pode conhecer a sua situação, se aceita um acordo ou não. Se ela está passando fome, quem sou eu pra dizer que ela deve esperar, que no futuro ela possa receber um pouco mais num processo na Justiça”, diz o procurador. E em qualquer dessas situações, devem receber orientação jurídica confiável.

Outra orientação geral é sobre o prazo prescricional. “O prazo prescricional para que entrem com ações pedindo seus direitos não termina em novembro de 2018”, enfatiza, citando os três anos que a Fundação Renova alega. “Como o dano se renova diariamente, esse prazo se renovaria todo dia”, argumenta, antecipando uma nota técnica que o MPF deve lançar em breve, para frear mais um dos abusos impostos pelos (in)gestores do desastre.

Todas as notas, documentos e notícias sobre a atuação do MPF no caso Samarco/Vale-BHP podem ser acessadas no site da instituição

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