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‘Titula Brasil é parte do ‘passar a boiada’ do governo Bolsonaro’, aponta MST

Enquanto titulação bate recorde, orçamento para aquisição de terras caiu de R$ 930 para 2 milhões desde 2011

Karini Bergi

Várias manobras explicam os péssimos números relacionados à Reforma Agrária durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Expostos em reportagem publicada no jornal Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (9), os dados oficiais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) confirmam o que os movimentos sociais vêm denunciando há uma década, a partir de sua vivência em acampamentos e assentamentos em todo o país: estagnação das aquisições de terras e indisponibilidade de políticas públicas de habitação e crédito agrícola, esta, atingindo a agricultura familiar como um todo. 

Em paralelo aos cortes profundos no orçamento básico para criação e implementação de assentamentos, proliferam as rodadas de entrega de títulos individuais de terras a assentados de todo o país. No Espírito Santo, o Pip Nuck, em Nova Venécia, noroeste do Estado, tem visto iniciar esse processo. E outros, também no norte, estão sendo alvo de ações de georreferenciamento e parcerias entre prefeitura e governo federal para atualizar o cadastro das famílias com vistas à titulação. 

Conforme destacou a Folha, o investimento em aquisição de terras em 2022 (R$ 2,4 milhões) equivale a apenas 0,25% do orçamento de 2011 (R$ 930 milhões). Queda acentuada também da verba discricionária total do Incra: de R$ 1,9 bilhão em 2011 para R$ 500 milhões em 2020.

Em hectares, a incorporação de terras ao Programa Nacional de Reforma Agrária registrou 70 milhões nos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT), de 1995 a 2010, mas, “praticamente desapareceu sob Bolsonaro, assim como o número de novas famílias assentadas”, sublinha o jornal. 

Além disso, “nos primeiros dias de gestão, o Incra paralisou todos os cerca de 250 processos de aquisição e desapropriação de terras para a reforma agrária, medida que serviria de prenúncio a um futuro de estrangulamento orçamentário e fim da política de criação de assentamentos”.

Crescimento, apenas na entrega de títulos de propriedade, após a Lei 13.465/2017, do Governo Temer, que flexibilizou o processo de regularização fundiária e, sob o nome de Programa Titula Brasil, “virou uma febre com Bolsonaro, que em três anos e três meses de governo entregou 337 mil títulos, um recorde”.

‘Passando a boiada’

“O programa Titula Brasil é parte do ‘passar a boiada’ do governo federal na pauta agrária”, avalia Adelso Rocha Lima, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Espírito Santo, invocando a infeliz declaração feita pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião de ministérios de Bolsonaro, no dia 22 de abril de 2020, de que era preciso aproveitar o momento em que “a atenção da imprensa está quase totalmente voltada pra Covid (…) e ir passando a boiada, e ir mudando todo o regramento e simplificando normas (…)”.

O coordenador ressalta que o Titula Brasil faz uma “falsa propaganda, de que as famílias podem acessar algumas políticas públicas a partir da titulação”. É falso, acentua, porque “não há política pública para serem acessadas pelas famílias”, seja em habitação ou crédito rural. “Se isso fosse verídico, os agricultores familiares, que já dispõem de título, poderiam estar acessando”. Mas essas políticas públicas, afirma, estão sendo asfixiadas, tanto quanto as ações de reforma agrária. 

“Se antes as famílias podiam acessar o Pronaf [Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar], há quatro anos, é raridade alguma família assentada acessar alguma política de financiamento. Os bancos agora estão colocando a titulação quase como uma condicionante para ter acesso. E enquanto isso, o governo federal vem extinguindo as mais diversas políticas de financiamento, reduzindo recurso do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e para assistência técnica. Há mais de década não há projetos de desenvolvimento nos assentamos”, depõe. 

Adelso cita algumas normativas federais que vêm sendo esvaziadas: o Decreto nº 9424/2018 e a Instrução Normativa nº 101/2020, voltados ao crédito habitacional, para construção e reforma: “até o momento, passados quase quatro anos, nenhuma família capixaba em área de assentamento acessou nem construção nem reforma de casa”. 

Já em âmbito estadual, o Decreto nº 4.989, de 14 de outubro de 2021, que dispõe sobre os assentamentos sob gestão do governo do Estado – são 22 atualmente –, sinaliza na direção correta, sob o ponto de vista do movimento social. “Essa é uma proposta que se aproxima do que o MST acredita ser o viável para as famílias assentadas”, afirma, referindo-se à concessão de CDRU ao invés de título de propriedade, à transmissão dos lotes de pai para filho, numa “sucessão familiar dentro dos assentamentos”. 

O líder sem terra aduz: “Não é necessário titular os assentamentos para promover um processo de desenvolvimento social, econômico, ambiental e organizativo das famílias, mas sim que tenha política pública para esse processo”, havendo vários exemplos no Brasil, ressalta, de assentamentos que prosperam sem o título de domínio. 

“Se o governo federal quiser fazer alguma ação relacionada à reforma agrária, se o superintendente do Incra quer demonstrar alguma iniciativa, é necessário que construa uma parceria com o governo do Estado e crie assentamentos nas áreas em que há acampamentos. São áreas patrimoniais e em que a própria empresa produtora da monocultura de eucalipto {Suzano, ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose], colocou à disposição para ser negociada com o governo do Estado e federal”, orienta Adelso Rocha. São mais de mil famílias acampadas hoje no Espírito Santo e 100 mil em todo o país. 

“Se o governo federal e o superintendente do Incra no Espírito Santo querem fazer algum demonstrativo de política pública, então também construa uma parceria com a Secretaria do Estado de Agricultura e outras para que as famílias assentadas do Espírito Santo possam acessar o programa de Habitação. São diversos anos que em vários assentamentos as famílias não acessaram habitação mesmo existindo legislação instrução normativa, crédito nessa perspectiva”, complementa. 

A conta ainda vai chegar

Adelso ressalta ainda a Instrução Normativa 114, publicada no último dia dois, que “estabelece uma cobrança pela instalação dos assentamentos”. Um sinal, alerta, de que enquanto caminha a titulação, o governo trata de criar instrumentos para cobrar valores das famílias assentadas. “O boleto de cobrança vai ser o cartão-postal que o governo federal vai entregar junto com os títulos”. 

O coordenador estadual do MST explica ainda que antes de qualquer movimentação no sentido de concessão de título de domínio ou de CDRU, é necessário que o Incra atualize o cadastro de concessão de uso, que tem validade de dez anos. No Estado, não há assentamentos ainda regularizados. 

Feita a regularização, é preciso deixar que a família decida qual dos dois ela quer. Recentemente, porém, o governo federal estabeleceu que a CDRU só é permitida em assentamento ambientalmente diferenciado – extrativista, de desenvolvimento sustentável ou florestal. 

“Fora esses, as famílias só têm direito ao título de domínio. Essa foi a manobra que o governo federal fez para entregar o título de propriedade privada para as famílias assentadas, tirando a oportunidade de escolha. O Incra que decide qual documento as famílias vão receber. São estratégias do governo federal de desmantelar as políticas de reforma agrária”. 

No caso do título de propriedade, a conta, que tudo indica vai chegar, ainda não tem valor definido. “Por enquanto a família não sabe quanto vai pagar”, ressalta. 

Mercantilização da terra

A reportagem da Folha lembra ainda que “movimentos rurais e partidos de esquerda ingressaram no fim de 2020 no STF (Supremo Tribunal Federal) com uma ação para tentar obrigar o governo a retomar o programa, mas em 2021 ela foi rejeitada. Houve recurso e o caso está, hoje, nas mãos de André Mendonça, um dos ministros indicados por Bolsonaro”.

Também no ano passado, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público lançou um guia em que alerta para o risco da distribuição dos títulos de domínio. “Deve-se reconhecer que, no caso do TD, há um risco maior de mercantilização da terra e da venda de lotes, incrementando a especulação em torno do imóvel. Por essa razão, recomenda-se ampla discussão a respeito desse título”, informa o jornal.

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