Os resultados de oito expedições realizadas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) na plataforma continental norte do Espirito Santo, entre novembro de 2015 e dezembro de 2016, foram entregues ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) nessa sexta-feira (14).
O relatório consolidado contém estudos sobre a qualidade da água, a presença de metais pesados e a contaminação de organismos marinhos, como fitoplânctons e zooplânctons, e a presença de rejeitos depositados no fundo do oceano.
Denominado Monitoramento da Influência da Pluma do Rio Doce Após o Rompimento da Barragem de Rejeitos em Mariana/MG – Novembro de 2015: Processamento, Interpretação e Consolidação de Dados, foi produzido por uma equipe de dezenas de profissionais de diversas áreas do conhecimento e coordenado pelo professor Alex Cardoso Bastos.
Segundo divulgado pela ICMBio, os estudos mostram que, no período pesquisado, a lama se espalhou rapidamente no oceano, tanto ao norte quanto ao sul da Foz, extrapolando em ambas as direções as divisas do Espírito Santo. Foi possível perceber a presença dos metais da pluma de rejeitos desde a cidade do Rio de Janeiro até o Arquipélago de Abrolhos, na Bahia.
O ICMBio destacou que, “no banco de Abrolhos, onde o Instituto administra o parque nacional marinho, houve o registro de micropartículas de ferro, metal ainda muito presente em toda a área atingida, o que indica a necessidade de se manter o monitoramento. Há a preocupação de que os sedimentos, alojados no fundo do mar, possam estar sendo levados, lentamente, para a região pelo movimento das correntes marinhas”.
Dentro dessa grande área, foi mais fortemente atingida a região entre Barra Nova/São Mateus e Barra do Riacho/Aracruz, incluindo três unidades de conservação mantidas pelo ICMbio: a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas e o Refúgio de Vida Silvestre (Revis) Santa Cruz, em Aracruz, e a Reserva Biológica (Rebio) Comboios, em Linhares.
Sem cadastro
O reconhecimento das comunidades do norte da Foz como atingidas, no entanto, só foi acontecer em março de 2017, por meio da Deliberação nº 58 do Comitê Interfederativo (CIF) – colegiado de entidades governamentais criado logo após o crime, para fiscalizar e deliberar sobre os programas de compensação e reparação dos danos.
Passados quatro meses da Deliberação 58, porém, a Fundação Renova, responsável pelo financiamento e execução dos programas, ainda não cadastrou as comunidades e mantém sua estratégia de tentar desarticular as comunidades, incitando disputas e desentendimentos, para enfraquecer a luta dos atingidos. As Defensorias Públicas Estadual e da União cogitam judicializar a questão, caso a Fundação não cumpra a determinação do CIF.
Em declaração a este Século Diário há cerca de um mês, o defensor público estadual Rafael Mello Portella Campos criticou a postura da Fundação Renova em continuar se negando a cadastrar as comunidades. “Indica que a Fundação não está disposta a reconhecer que a extensão do dano atingiu todo o litoral norte do Espírito Santo”, avaliou.
O sofrimento dos pescadores e moradores em geral das comunidades localizadas entre Pontal do Ipiranga/Linhares e Campo Grande/São Mateus é gritante. A escassez hídrica dos rios e manguezais, a poluição do mar e a queda nos estoques pesqueiros em todo o ambiente estuarino e marinho, que já vinha sendo sentido há muitos anos, tomou uma proporção até então inimaginável após o crime da Samarco/Vale-BHP.
Saúde
Peixes e caranguejos foram praticamente exterminados e os poucos que sobrevivem, com várias anomalias, como feridas e baixo peso, ou mesmo os que não aparentam alterações, não conseguem ser vendidos, pois o consumidor rejeita todo pescado que venha da região atingida. A população também sofre duramente com problemas de saúde, especialmente as crianças e os profissionais que mantém mais contato com a água contaminada.
Feridas na pele que não se curam afetam toda a região, além de dores de cabeça, diarréias e vários outros males. Mais impressionante do que todo o horror que se espalhou sobre a região em decorrência da lama de rejeitos, é a omissão da Fundação e do Poder Público em prestar atendimento a essas pessoas.
Órgãos de saúde e vigilância sanitária estão ausentes, deixando a população local – e também a da cidade, que, inadvertidamente consome o pescado oriundo da área atingida – sem qualquer informação sobre os problemas de saúde provocados pelo contato com a água (e consumo da água, no caso de algumas famílias sem recursos financeiros para comprar água potável) e consumo do pescado.
A situação vem sendo denunciada pelos moradores e chamou atenção do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), que organizou um seminário em junho passado sobre o assunto. O evento reuniu pescadores e pescadoras de toda a bacia do Rio Doce, em Minas Gerais e Espírito Santo, e impressionou os agentes pastorais, por meio de relatos do sofrimento diário dessas pessoas que convivem com a lama e o abandono dos entes que deveriam lhes atender. “O rio não é só um local de trabalho. Esse relato dos pescadores é muito profundo, porque afeta a economia e a saúde. Eles perderam um referencial de vida”, conta Ormezita Barbosa de Paula, secretária executiva do CPP.
Novos parâmetros sanitários
Na última visita à região de Barra Seca, em São Mateus, uma das comunidades ainda não atendidas pela Fundação Renova, o oceanógrafo Joca Thomé, coordenador nacional do Centro Tamar/ICMBio, constatou mais uma vez o agravamento da situação dos pescadores após o crime. “Os pescadores relatam muita mortandade de peixes e ausência de aves nos manguezais. Esse é o quadro: ninguém pesca direito, ninguém compra os peixes de lá, eles estão realmente num quadro de miséria”, lamenta.
O relatório consolidado da Ufes já foi compartilhado pelo ICMBio com os demais membros do CIF, será enviado também para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O oceanógrafo ressalta que há outros relatórios, de outras universidades e do próprio ICMBio, já produzidos, que precisam ser enviados e reenviados à Anvisa.
Entre eles, o estudo apresentado no final de junho ao ICMBio por pesquisadores das universidades Federal do Rio Grande (Furg) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Ufes, mostrando que a contaminação do mar e do estuário do Rio Doce entrou numa fase crônica, com alguns metais ainda aumentando sua concentração.
“É preciso ter muito cuidado”, alertou o oceanógrafo Adalto Bianchini, da Furg, enfatizando a necessidade de atuação da Vigilância Sanitária, em coro com seu colega do Centro Tamar/ICMbio. “É preciso maior envolvimento dos órgãos de saúde e vigilância sanitária. Porque muitos dos parâmetros que estão sendo identificados nem constam na legislação sanitária atual e precisam ser mais discutidos, como por exemplo altos teores de ferro, alumínio e manganês observados, cuja concentração é crescente no meio”, informa Joca Thomé