Trabalhadores do mar de Vitória lutam para reverter exclusão. Cultura permanece viva e é tema de filme
Uma cidade-ilha que, numa “canetada”, criminalizou a profissão milenar da pesca artesanal no mar. Assim é Vitória, capital do Espírito Santo. Mas os pescadores artesanais permanecem em luta para reverter a lei de 2017 que, afirmam, é inconstitucional. E a cultura do trabalhador do mar continua viva e é tema de um filme lançado em Jesus de Nazareth, um dos berços da pesca artesanal de Vitória.
“Na modalidade de rede, que a maioria do pescador artesanal trabalha, em Vitória em lugar nenhum é permitido”, afirma o vice-presidente da Associação dos Pescadores, Marisqueiros e Desfiadeiras da Região da Grande São Pedro, Celso Henrique Luchini. A exclusão acontece por conta da Lei nº 9.077, de nove de janeiro de 2017, por iniciativa do hoje vereador Luiz Emanuel (Cidadania), na época secretário de meio ambiente do então prefeito Luciano Rezende (Cidadania).
“Quando fizeram essa lei não avisaram a nenhum pescador. Foi em janeiro de 2017. E coincidentemente em 2018 se criou a APA [Área de Proteção Ambiental] da Baía das Tartarugas. Parece que primeiro eles queriam tirar o pescador de circulação, para fazer essa APA, que é o quintal particular dos grã-fino da Ilha do Boi, Camburi, Ilha do Frade. Onde os canoeiros querem navegar, os pescadores de final de semana, que trabalham nas empresas, têm seu salário em dia, chega sábado e domingo, jogam a linha deles para se distrair. Enquanto o pescador que usa o mar para levar dignidade e alimento para dentro das suas casas, não foi procurado, não foi feita nenhuma distribuição de cesta básica, não foi criado nenhum auxílio. Eles não sabem quantos pescadores há na Baía de Vitória, dentro do município de Vitória”, relata.
A lei municipal estabelece que “é proibida a pesca utilizando qualquer tipo de rede, como de emalhe, de espera, de cerco ou de arrasto, na Baía do Espírito Santo, na Baía de Vitória e nos canais de navegação do município. Quem for flagrado pescando com qualquer tipo de rede terá todo o material apreendido, pagará multas, que podem variar de R$ 700 a R$ 100 mil, e, ainda, responderá a processo por crime ambiental”.
Celso lembra que Luiz Emanuel também foi o proponente, quando vereador pelo PSDB, de uma Lei que proibiu na cidade o transporte de carroças puxadas por animais, a Lei nº 8.678, promulgada em junho de 2015. “Só que as carroças os burrinhos eles comparam, por cinco mil reais, acho, na época, e depois deram um curso para esses carroceiros e se não me engano, uma ajuda de custo também. Isso que revoltou mais os pescadores, porque eles ficaram desassistidos de tudo”.
Celso expõe a contradição com pesar. “Aí eu falo para você: Vitória, uma ilha, cercada de água, uma profissão milenar, escorraçada, um monte de profissional tratado como bandido, pessoas que têm RGP, sua carteira que dá o direito dele pescar em todo território nacional …”.
Liderança na comunidade tradicional da Ilha das Caieiras, um dos ícones da identidade cultural da cidade, Celso conta que constantemente recebe pais de família que choram por não terem como alimentar a própria família devido à criminalização da sua profissão. “Não tem o que comer dentro de casa, o filho chorando querendo uma mamadeira e ele não ter como dar. Como que fica essa pessoa?”, suplica.
“O pescador artesanal é aquela canoa que vai duas pessoas, tem no máximo cinco metros, seis metros, e 40 ou 50 centímetros de largura, às vezes 70 ou 80. Alguns pescadores se aventuram a pescar no local permitido, que é depois do píer de Tubarão, mas quando a Capitania vê, manda embora, porque as embarcações não são adequadas. Do píer para fora, tem perigo de onda, rebocador grande quando passa faz onda, a canoa pode afundar, junto com o pescador. Está complicado, não gosto nem de falar que fico triste, mas é isso”.
Celso ressalta ainda que, na avaliação dos pescadores, a Lei 9.077/2017 é inconstitucional, pois atinge também quem quer pescar no mar do outro lado de Vitória. “Mesmo o pescador artesanal que estiver pescando do lado de Vila Velha, Cariacica ou Serra, essa mesma lei penaliza o pescador. A gente não tem lugar nenhum para pescar de rede na Grande Vitória. Uma lei municipal, que invade o território de outros municípios, é inconstitucional. E o que mais deixa a gente indignado é que nenhum juiz, Ministério Público, essas pessoas todas nunca ninguém chegou: ‘isso está errado, não é assim que funciona’. Tudo muito estranho e injusto”, pondera.
Pesca “bate-bate”
Em Jesus de Nazareth, outro berço da cultura da pesca e do mar na capital capixaba, o pescador e defensor dos Direitos Humanos Adão José Damas Ferreira da Matta ecoa as súplicas do colega da Ilha das Caieiras.
Do alto de mais de meio século de vida dentro do mar – “fugi de casa para ir para o mar primeira vez com cinco anos de idade, desde pivetinho vivo como pescador” – S. Adão repudia a lei municipal de proibição da pesca de rede. “Querem que a gente pesque no centro da cidade. Vai pegar o que lá?”, pergunta, gargalhando com ironia do que o mar poluído pelo porto oferece.
“A pescaria de ‘bate-bate’ não era para ser proibida, porque se a tartaruga se prender, ela é solta na hora. Golfinho é raro entrar na baía de Vitória, mas se emalhar, a gente solta também. O pescador de Vitória quer pescar, todo mundo fazia o cerco e o bate-bate. Soltava a tartaruga na mesma hora. Ele é consciente disso”.
O antigo bate-bate se assemelha ao que o Comitê Estadual de Gestão Compartilhada para o Desenvolvimento Sustentável da Pesca (Compesca) chama de pesca assistida e que, segundo avaliação técnica dos membros, é possível de ser praticada dentro da APA das Tartarugas e outros locais proibidos pela Lei 9.077/2017.
“Jacaraípe, Vitória, Vila Velha, Praia da Costa, Itapuã, Itaparica, Guarapari, Piúma, Iriri … em todos esses lugares não existe um pescador que não saiba que não pode matar tartaruga. Pelo contrário. É o primeiro que quando vê uma tartaruga na rede, vai salvar. Corta a rede pra salvar. Tartaruga cheia de verruga, leva pro Projeto Tamar. Tudo tem que ter normalidade. Se matar tudo agora, o que vai ser o futuro? Nada. Tudo o que tira e não coloca no lugar, acaba. O pescador artesanal sabe disso”, ensina. Já as traineiras, compara, não respeitam essa lei natural.
Antes da lei, chegaram as traineiras
“A pescaria ficou muito fraca depois que as traineiras chegaram, há uns dez, doze anos atrás. Elas têm aparelho ligado por satélite para encontrar os cardumes. Em Vitória, Vila Velha, Itapuã, Praia da Costa, Itaparica … antigamente colocava rede e pegava muito peixe, antes das traineiras de Santa Catarina. Elas chegaram comprando todo mundo. A população daqui era comprada com peixe doado. O pescador chegava na traineira e falava que queira um peixe para comer, para a família, daí ela dava era caixa de peixe, que o pescador não conseguia nem carregar, davam para todo mundo, e ficavam rindo de orelha a orelha. Um catarinense, um santista, que você vai lá e pede um peixe, e ele te dá sessenta quilos, oitenta quilos de peixe, você fica de sorriso de canto a canto, mas sabe que estão pescando peixe do Espírito Santo e acabando com tudo”, relata.
A ação predatória das traineiras, somada à lei de proibição na costa da cidade e vizinhanças, tem lançado os pescadores artesanais da capital em situações dramáticas: ou para a clandestinidade, ou para os riscos do alto-mar, ou para subempregos que minimamente absorvem uma mão de obra não qualificada para nenhuma profissão a não ser a milenar pesca artesanal.
“Ele migra para o alto mar para pegar peixe de linha. Mas tem que ficar mais tempo no mar. O barco dele é para um ou dois dias, mas ele tem que ficar 28 dias, 35 dias para conseguir pegar peixe. Então acaba trabalhando de empregado para os donos de barcos maiores. Ou vai para a construção civil, porque não tem estudo pra conseguir bom emprego. Vira ajudante de pedreiro, peão de obra, ajudante de pintura … ou porteiro de prédio, essas coisas”, descreve S. Adão.
Histórias com traineiras são inúmeras, vividas por ele ou colegas. “Aconteceu uma cena: os pescadores estavam há dois dias em cima do pesqueiro [local no mar que concentra grande quantidade de peixes em alimentação ou abrigo] quietos, tinham pegado uma urna e meia, cada uma com uma tonelada a uma tonelada e meia. Chegou uma traineira e mandou o pescador sair dali. Eles saíram, a traineira cercou o pesqueiro todo. Eles tinham pescado quatro toneladas de peixe em dois dias, enquanto a traineira levou 112 toneladas na hora. Deu um pouco para eles e ficou por isso mesmo. Aconteceu cena de outro barco, que estava pescando perto de um pesqueiro, a traineira chegou em cima, deu um lance só e saiu ‘chapada’ de peixe. Como ele não estava em cima do cardume, não deu nada para ele”.
Além da quantidade insustentável de pescado capturado rapidamente, as traineiras não fazem a seleção que o pescador artesanal naturalmente faz, em defesa da proteção dos estoques de peixes. “Sirioba, cioba, pargo, dentão, badejo, garoupa … são peixes que, quando pequenos, não têm valor comercial. Pescador não pega. Mas a traineira pega e mata. Uma traineira perto de Abrolhos matou mais de cinco toneladas desses peixes pequenos, menor que um palmo. Diz que é para fazer ração pra gato e cachorro. Cadê a fiscalização? Por que não soltaram quando viram que era pequeno? Badejo chega a mais de 100 kg, trouxeram filhote com 30 gramas”, denuncia.
O amor pelo mar como protagonista
Posicionamentos e histórias como essas são compartilhados por S. Adão e outros personagens reais no filme Marés. Dirigido por Thais Helena Leite, o curta-metragem já fez duas exibições para a comunidade de Jesus de Nazareth e participa de festivais de âmbito nacional e internacional.
“Em 2017, quando estavam explodindo o canal de Vitória para passar os navios para o porto, o filme registrou: estavam destruindo o canal de Vitória e você tinha de ver: seis, oito tartarugas, agonizando, perguntei para a fiscalização se iriam deixar, eles responderam que era pra um ‘bem maior’. Acontece que se fosse um pequeno, um pescador artesanal que tivesse matado as tartarugas, estaria atrás das grades. Eu mesmo salvei um pescador que estava mergulhando, ele ia morrer lá embaixo com aquelas explosões”, narra S. Adão.
Thais conta que as filmagens começaram, naquele ano, no primeiro dia após o fim do defeso do camarão. “A movimentação é linda, os pescadores voltando às suas atividades. As pessoas indo esperar para comprar ou para ganhar, porque sempre sobra”, lembra.
E foi justamente a beleza e a magia da cultura do trabalho no mar que a motivou a fazer o filme. “É uma cultura tão bonita! A Praia do Suá, ao lado da Marinha, atrás do Horto Mercado, com estaleiro e todos aqueles barcos. É incrível o contraste com os prédios de alto luxo. O hotel mais caro da cidade está ali e, ao mesmo tempo, aquela comunidade ancestral vivendo uma vida à parte, resistindo. A cultura, as amizades … é incrível a relação que as pessoas mantêm ali, é muito afetiva. Os horários são totalmente diferentes e as pessoas vão trabalhar felizes, conversando, contando ‘causos'”, descreve, com seu olhar cinematográfico de cidadã que se encanta com a sociodiversidade que resiste à verticalização, adensamento e artificialização da vida na metrópole.
A relação com essa vida paralela foi acontecendo aos poucos, movida pela alegria de compartilhar momentos do dia a dia das famílias de pescadores artesanais. “Eu comia peixe e escutava história de pescador, saía com a barriga doendo de tanto rir”, conta. “O filme Marés traz o amor pelo mar como protagonista”, afirma.
O roteiro do filme, explica, se baseou na “invisibilidade urbana desse grupo social, pescadores artesanais da Praia do Suá e de Jesus de Nazareth”. Os relatos de vida são intercalados pela pequena história de um “monstro marinho” que apareceu na região em 1984, mas que na verdade era uma baleia-franca, que pouco frequenta as águas capixabas.
“O filme tem uma abordagem muito livre, combinando experiências de pessoas da terceira idade, com uma ludicidade proporcionada pela animação e pela trilha sonora, composta especialmente para o filme pelo maestro Lino Ramos, tendo também a participação de Léo de Paula”, declara a diretora.
Marés representou o Espírito Santo no Festival Brasileiro de Cultura do Mar, que aconteceu este mês no Ceará, e também foi o documentário brasileiro selecionado no 9º Festival de Curtas de Manchester na Inglaterra.
O filme ficará disponível na internet em setembro. Para assistir ao trailer, clique aqui.