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‘Vamos remar para cima dessas empresas criminosas que não reconhecem o surfe’

Surfistas recebem na Câmara dos Deputados apoio para incluir cadeia produtiva do surf na Repactuação

Leonardo Sá

A comunidade surfista e a cadeia produtiva ligada ao surfe realizado tradicionalmente na Foz do Rio Doce, nas comunidades de Regência, Povoação e Pontal do Ipiranga, em Linhares, norte do Estado, precisam ser reconhecidas como atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP e serem incluídas no processo de repactuação liderado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O encaminhamento foi definido ao final da audiência pública realizada na tarde desta terça-feira (9) na Câmara dos Deputados, organizada pela Comissão Externa que fiscaliza o processo de repactuação e tem o deputado federal Helder Salomão (PT) como relator.

“Podem contar conosco. Ao final dos trabalhos dessa Comissão, vamos incluir, em nosso relatório, a atividade do surfe e toda a cadeia produtiva, que foram duramente impactadas pelo crime ambiental de Mariana, e trabalhar para que elas sejam contempladas na Repactuação”, afirmou o parlamentar, ressaltando que Regência era conhecida como “o Havaí brasileiro”, devido à qualidade das ondas, que atraíam esportistas de várias partes do Brasil e do mundo.

A inclusão, salientou, precisa ser alcançada a partir de um pleito dos demais atores envolvidos, como o Ministério dos Esportes e Defensoria Pública Estadual, também participantes da audiência, além de Advocacia Geral da União (AGU), Casa Civil e Ministério das Relações Institucionais, que serão demandados. “Precisamos garantir uma repactuação justa, integral e com participação dos surfistas atingidos”, reforçou.

Representando a ministra dos Esportes, Ana Mozer, Marta Sobral afirmou o apoio da pasta para “encontrar soluções que atendam às necessidades desses atletas e que ajudem a reconstruir suas vidas. É essencial que esses atletas recebam apoio necessário para continuar praticando esportes e se recuperar dos traumas causados pelo desastre”.

O defensor público estadual Rafael Portella contextualizou a demanda dos surfistas dentro de um espectro de negações de direitos a praticamente todo o litoral capixaba. “Os impactos do desastre são subestimados até hoje no Espírito Santo. Até hoje lutamos para o efetivo reconhecimento do litoral do Espírito Santo e nada parece ser suficiente para superar esse entrave”, disse.

O exemplo mais recente de retrocesso, citou, foi a decisão do Tribunal Regional Federal da 6ª Região de suspender a liminar que havia sido concedida pelo juiz do caso, bloqueando R$ 10 bilhões do cofre da Vale e BHP Billiton para garantir a implantação das ações de compensação e reparação da Fundação Renova nas comunidades ainda não atendidas, apesar do reconhecimento como atingidas pelo Comitê Interfederativo (CIF) desde 2017.

“Nós recebemos com extrema preocupação [a suspensão da liminar pelo TRF]. Vamos tomar as medidas cabíveis, recorrer dela, mas é sempre com melancolia e frustração que recebemos essas notícias, que mantêm o reconhecimento dos danos no litoral sub judice”.

Especificamente sobre o surfe, o defensor público ressaltou que “várias facetas desse reconhecimento do litoral capixaba dialogam com a questão. Estamos falando de toda uma cadeia produtiva ligada ao turismo”, apesar do fato de que “os surfistas estão entre os primeiros a sofrer os impactos do rejeito, por estarem dentro da água e a alertar as demais categorias sobre os efeitos nefastos que o rejeito pode causar”. Alertas, sublinhou, atestados por estudos técnicos robustos, como os apresentados pela Aecom, perita judicial no processo, que apontou grave contaminação por mercúrio e metilmercúrio na Foz do Rio Doce.

Além do aspecto indenizatório, Rafael Portella disse que a Defensoria busca “possibilitar um leque de opções às comunidades e categorias afetadas, que possa dialogar com a reestruturação econômica”, citando como exemplo a declaração do surf como patrimônio cultural, o que pode ajudar a “evidenciar os direitos e os danos sofridos, incentivando o turismo e a reestruturação econômica”.

“Temos também uma preocupação fundamental com a saúde e isso envolve o fortalecimento do SUS, a participação social nas dinâmicas da reparação, os diagnósticos que precisam ser feitos e os surfistas precisam estar contemplados”, complementou.

‘Vamos remar para cima das empresas’

Representando a categoria, participaram presencialmente do debate os surfistas Hauley Valim, da Associação de Surf de Regência (ASR), e Paulo Sérgio Samarçaro, o Paulinho, das associações de Surf do Pontal do Ipiranga (Aspi) e de Linhares (ASL). 

“A gente está esquecido. Eu sou pescador, dono de comércio e sou surfista desde os 14 anos de idade. Sou atingido, eu e minha família. Minha menina não pode desenvolver o surfe como eu pude. O rejeito continua descendo de Minas Gerais para Regência, Pontal do Ipiranga e Povoação”, relatou Paulinho. 

“Para a gente, que é surfista, é até difícil de explicar. Mas o surfe é mais do que um esporte, um lazer, é quase uma religião. É uma coisa muito séria, que a gente não está sendo ouvido até hoje, está abandonado. São sete anos sofrendo com a lama. Eu não tenho coragem de deixar minha filha entrar na água pra surfar. Tem três gerações de meninas já competindo, mas lá fora, porque na nossa área não pode fazer campeonato”, descreveu. “Vamos remar para cima dessas empresas criminosas, por que até hoje a gente não foi reconhecido e é ignorado em todas as situações”, conclamou.

Ruptura da prosperidade

Hauley Valim ressaltou que “o Brasil tem mais de cinco títulos mundiais, três campões mundiais, e Regência é uma das dez melhores ondas do Brasil”. Antes de 2015, disse, “a gente vivia um processo orgânico de desenvolvimento cultural desse esporte nas praias de Linhares, junto com toda a cadeia produtiva do turismo”.

Era um momento em que o surfe local ganhava a visibilidade compatível com a qualidade das ondas. “A onda de Regência caía no gosto mundial, pessoas vinham de vários lugares do Brasil e outros países para conhecer essa onda. E isso trazia uma autonomia para a gente, que garantia prosperidade econômica por nossos próprios esforços”.

O rompimento, afirma, “gerou uma ruptura dramática com esse processo orgânico que nós tínhamos, em toda essa cadeia produtiva emergente”. Lojas foram fechadas, equipamentos ficaram parados, empregos foram perdidos, descreve.

“Perdemos o direito de ocupar um território que escolhemos para viver, isso foi tirado de nós, foi roubado de nós quando a Vale permitiu que a barragem se rompesse. Crianças, adolescentes e jovens foram privados da oportunidade de aproveitar esse ciclo produtivo e abundância. Perdemos as escolinhas de surfe, técnicos, juízes, professores de surfe, todos tiveram renda drasticamente prejudicada. A ‘direitinha’ onde as crianças aprendiam a surfar, na foz do rio, foi drasticamente impactada, porque é onde os rejeitos estão concentrados, na boca do rio, que era também um espaço de sociabilização, de desenvolvimento das relações comunitárias, que garantiam a nossa fortaleza enquanto comunidade”.

Esses impactos, salientou, estão descritos pela Fundação Getúlio Vargas, expert contratada pelos órgãos de Justiça. Impactos econômicos e na saúde física e mental. “Arsênio na Foz do Rio Doce está 230 vezes maior que a recomendação do Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente]; Manganês 461 vezes; Chumbo 470 vezes; Níquel 276 vezes; Cobre 911 vezes; Alumínio 4443 vezes; Ferro 1921 vezes”, elencou, a partir de dados destacados no artigo publicado recentemente pelo professor Claudio Zanotelli da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), João Paulo Lyrio lembrou ainda que “Regência foi um dos locais que mais receberam recursos da reparação e que menos veem os resultados, porque falta dar voz aos atingidos e garantir a eles o direito de participar das medidas de reparação”.

A pauta dos surfistas, afirma, precisa de apoio de todos os atingidos e instituições que atuam no caso. “A injustiça cometida contra um é uma ameaça a todos nós. O reconhecimento dos surfistas é um direito que interessa ao MAB e tenho certeza que interessa a todos os atingidos que lutam por uma reparação mais justa e por um modo de produção mais digno nas cabeceiras do Rio Doce, porque a mineração como se organiza hoje, é uma ameaça contra todos nós”.

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