Até o início da tarde desta segunda-feira (17), a viola do lendário Chico Dantas não tinha sido devolvida ao responsável pela guarda do instrumento: continua sob a responsabilidade da Polícia Civil. Mas já está nas ruas um dos autores do roubo do instrumento e do incêndio na sala onde era guardado o arquivo do Ticumbi, em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo.
O roubo, seguido da destruição do restante do material do arquivo do Ticumbi, ocorreu às 5 horas da última sexta-feira (13). Na sequencia, os autores roubaram e, uma vez mais, colocaram fogo em um pequeno comércio na cidade.
Um dos autores foi imediatamente identificado e preso. Trata-se de Marcelo “Corredor”, como é conhecido em Conceição da Barra. Ele foi conduzido para o DPJ de São Mateus. Mas segundo relato do mestre Terto Balbino, de 82 anos, foi preso uma segunda pessoa, que continua no DPJ, que ele não soube identificar.
Marcelo “Corredor” já está em Conceição da Barra e circula tranquilamente pelas ruas. O próprio mestre Terto já passou por ele na rua. Seu comparsa continua preso, informou mestre Terto.
Há suspeita de que o roubo e o fogo colocado no local onde a história do Ticumbi era guardada tenha sido um crime de mando, considerando que a elite branca da região ainda não convive pacificamente com as manifestações culturais dos negros, das quais o Ticumbi é considerado o mais importante. E o segundo roubo da dupla? Seria uma manobra para despistar a responsabilidade do atentado ao Ticumbi.
Viola mágica
Além da queima dos registros históricos das apresentações do Ticumbi, o que é apontado como um dano irreparável ao folclore capixaba, houve o roubo da viola de Chico Dantas. Também foram levados os óculos de grau de mestre Terto, cujas prestações ele ainda paga, uma sanfona, faca e outros pequenos objetos. Nada voltou ao cuidador do acervo, o mestre Terto Balbino. O material, segundo foi informado, continua com a Polícia Civil.
Considerada uma relíquia, a famosa viola de Chico Dantas tem uma longa história. Chico Dantas, ainda novo, foi acometido de doença grave, e estava para morrer. Então, fez promessa para São Benedito, seu santo padroeiro. Se fosse curado, tocaria sua viola no Ticumbi até morrer. São e salvo, começou a tocar sua viola ainda quando o mestre do Ticumbi era Luís Hilário.
Há quantos anos? Mestre Terto não dá precisão. Com 82 anos, ele se lembra de quando que, quando menino, Chico Dantas já era violeiro do Ticumbi. Cumpriu sua promessa e tocou até morrer. Uns 70 anos de viola para o seu padroeiro São Benedito.
Hermógenes Lima Fonseca (1916 – 1996), em tradução livre, contou em prosa que Chico Dantas tocou sua viola para seu padroeiro, já no céu.
Rogério Medeiros explica o que é Ticumbi no texto abaixo:
O Ticumbi é um grupo folclórico de Conceição da Barra, integrado somente pelos negros da região, tratando-se também de uma manifestação única no País, pois só é encontrado no município de Conceição da Barra. São negros devotos de São Benedito, que louvam o santo na passagem de ano.
Na época da passagem de ano, eles se vestem com uma roupa branca, cobertos por uma bata. A cabeça é enfeitada com flores. Em longas evoluções, durante duas horas se apresentam na porta da Igreja de São Benedito. Além do pandeiro, há apenas um violeiro que tira as canções de louvor a São Benedito. Há no entanto, uma disputa entre dois reis para saber qual deles dará o baile de São Benedito. Embaixadas são tiradas pelos secretários dos dois reis (de banda e de congo) e há uma luta entre eles, mas invariavelmente vence o rei cristão, que é o rei de congo. Na verdade, eles reproduzem as velhas lutas entre mouros e cristãos, que por oito séculos tomaram conta da Europa.
No dia anterior à apresentação, o grupo desce o rio Cricaré, conduzindo a pequena imagem de São Benedito do Córrego das Piabas – que fica na localidade de pescadores, conhecida como Barreiras – para ser louvada pelos seus devotos em Conceição da Barra. Este é o único dia em que a imagem pode sair da localidade de Barreiras.
Essa imagem é considerada pelos negros o mais milagreiro da região. Era conduzida sempre pelo líder dos escravos da região, Benedito Meia-légua, que foi queimado pelos fazendeiros escravocratas dentro de uma árvore, onde havia se refugiado. Depois do incêndio a imagem foi encontrada intacta.